Conto inédito de Mario Garrone: A Nudez da Mulher Morta

De em setembro 24, 2012

Mario Garrone, escritor e jornalista

Mais uma vez tenho a honra e a alegria de poder contar aqui no blog com a colaboração de Mario Garrone, jornalista, escritor e um grande amigo. Autor de dois romances, O Homem Infeliz (Imago Editora/1998) e Pequeno Relato Sobre o Caos (Chiado Editora/2012), Mario com este conto mostra-se um especialista na arte de contar uma história concisa e muito bem articulada, características clássicas do conto. No entanto, Garrone com seu estilo marcante de escrever com lacunas, ora de palavras ou termos ora de ideias, provoca o leitor a participar do enredo e construir a própria história. Meu amigo, muito obrigado por confiar no Favo para divulgar sua obra, e aos leitores, uma ótima leitura. Vou aguardar as opiniões de vocês sobre este conto inédito do escritor paulistano Mario Garrone.    

 



 

A Nudez da Mulher Morta

O horror começou quando interromperam o filme água com açúcar e puseram no lugar o repórter, a Wandinha e a chuva. Um rio em volta crescendo, ameaçando a coitada, o desespero, o risco de morte no meio da enchente. O filme estava a um passo do fim, audiência excelente, disseram, quando a tempestade despencou e apareceu a Wandinha dentro do carro gritando se não vier ninguém que me salve em pouco tempo eu estou morta. Eu temi que acontecesse a tragédia quando tiraram o filme meloso do ar e na tela a Wandinha, o temporal alagando a cidade, o repórter falando do  grande perigo e ela gritando nenhum homem me acode? Se o herói é feio, não se dá o devido valor, não se dá. Todo mundo passa por cima, ignora, pelota nenhuma para quem saiu da farmácia logo depois que cortaram a transmissão e a Wandinha entrou na casa de quem só estava a fim de ver um filminho xarope na tarde do feriado. Tiraram a imagem da atriz e um tempo depois, pouco tempo depois de o cara da câmera mostrar a Wandinha gritando, ilhada no carro, e de o jornalista dizer que podia sim haver morte, não estava descartada de jeito nenhum a possibilidade de a Wandinha morrer afogada, eu previ o pior e não tive mais esperança. Alguém que se arrisque por outro hoje em dia é difícil. É todo mundo na sua, um pavor de que o sujeito do lado seja assaltante, quadrilheiro, golpista. Neca, a mãe, fez questão do churrasco na casa. Era preciso ser grata, ela disse. Mandou rezar missa para as almas. Túlio, o pai, acolheu com emoção a vasta família oriental. Wandinha comprou, sem poder, uma camisa cara de grife no shopping, mas deixou claríssimo que nada daquilo pagava. Nenhuma festa, nenhum presente estariam à altura do gesto, ainda que digam (sempre haverá quem!) que o japonês só saiu da farmácia porque tinha televisão, porque tiraram o filme do ar e puseram na tela o repórter e a Wandinha gritando. Se era para homenagear com churrasco que fosse na casa da Neca e do Túlio. No apartamento pequeno da Wandinha não dava. Era gente demais, o Túlio achou imprescindível convidar a parentada toda do japa. Da parte deles valorizou-se o mérito. Reconheceu-se! Quando pararam de passar o filme um minutinho antes do beijo e só o que houve foi a Wandinha gritando não tem nenhum homem que preste e me salve?, não teve espaço para mais nada na tela do vídeo senão chuva, temporal na rua e dentro de casa, um toró e o repórter alterado falando que havia um iminente perigo de morte da mulher ilhada no carro. Isso até o Ari Yanashira sair da farmácia e tudo vir a ser diferente, nunca mais a vida de antes, o avesso de tudo. A desgraça!

Saiu nos jornais, transmitiram nas rádios, se espalhou na internet, bombou no YouTube. No começo deram um pouquinho de importância para o nissei que teve toda a coragem. Não se podia omitir totalmente quem enfrentou aquela água suja esparramando lixo na rua cheia de bueiro entupido. Mas o que está dando as cartas no mundo hoje em dia é a beleza. Quem é muito feio não conta! O que ligava de gente de rádio e tevê. Era entrevista daqui e dali na AM, FM, online. Se a mulher que se safa da enchente é boa de corpo sarado e tem um rosto sem ruga que o photoshop melhora e foi até quase miss, é um tal de produtor de programa ligando, querendo saber como foi esse negócio de estar quase morta e de repente sair do aguaceiro e receber convite para posar para a revista de homem. O primeiro programa que a Wandinha topou ir foi o da que engravidou do cantor sertanejo casado, a tal que. Wandinha cismou, negou, foi enfática. Em absoluto! Não ia. Recusou no princípio. Ir para quê? O que ela tinha feito, se o herói nisso tudo era o japa, o mérito de ninguém mais senão dele? No fim acabou indo até mesmo ao programa da Ruiva! Se não havia sentido ir à tevê, e não havia nenhum, a questão é que a Wandinha vinha num duro tremendo, conta atrasada da luz e do gás, o ex-marido dando cano direto na pensão do filho de dezessete e ela pondo as tripas para fora para vender plano de saúde que não cobre doença. Ela pressentiu ali um viés, um atalho. Convidar o japonezinho que é bom ninguém quis. Gente feia é atraso. Para ele só o churrasco na casa da Neca e do Túlio com toda a família oriental orgulhosa do ato comendo coxinha e empada. A favor de tirar toda a roupa ninguém foi na família. A Wandinha, inclusive, no começo resistiu e achou absurdo, o cúmulo! Até que cedeu (vaidade, meu filho, tudo no mundo é vaidade. E dinheiro! Ela lá de bunda virada para cima no capô do automóvel importado caríssimo, a simulação da chuvarada no corpo todo molhado, os cabelos pingando, as pernas abertas no quarto do hotel cinco-estrelas, os seios lambuzadinhos de leite e o olhar convidativo e lascivo em cima do carro, uma postura pornô que mulher honesta não ousa). Enquanto a coisa era só depoimento, conversa mole com um e com outro na tevê para bombar o ibope, a Wandinha muito bem maquiada e produzida para contar como é que tinha sido quase morrer afogada dentro do carro, não houve incômodo nem constrangimento. Era sim um exagero produtor de programa ligando, como se a atitude nobre fosse dela de ter sido salva pelo herói que, de herói, virou coisa nenhuma, uma caca. Mas enquanto não passou daquilo de ver a Wandinha na televisão a toda hora contando a mesmíssima coisa em detalhes, como tinha sido o negócio de escapar da morte sozinha (o japonezinho da farmácia sumindo a cada dia mais da história até chegar ao ponto de nunca ter havido sequer farmácia perto da enchente de onde pudesse ter saído um nissei) nem a Neca nem o Túlio foram contra. Só o Brunão não achou graça de nada desde o começo. Com ele não teve refresco em momento nenhum. Ciumento, mais parecia pai, não o filho. Ficou furioso quando ela foi ao programa da Ruiva. Quase quebrou a mão esmurrando a parede e a mesa (mania de chamar a Ruiva de vaca, de achar que toda mulher é puta!) Se a Wandinha queria, não ia ser o filho a impedir. Filho não manda em mãe, não decide o que a mãe, o que o pai, mesmo se o pai e a mãe fazem merda. O Brunão todo mês lá na banca do Paraíba comprando revista de mulher pelada, isso o Paraíba garante, freguês assíduo, infalível. Mas em hipótese nenhuma a mãe. O Brunão fazia coleção de revista pornô, todo tipo de mulher sem roupa lá na gaveta abarrotada do quarto, gastando a mesada com sexo, apesar da pornografia de graça rolando na internet. Não se deve nunca atirar na mãe com o revólver, usar faca, punhal! O que tem de absurdo nos lares! É pai abusando de filha, mãe espancando criança, marido dando soco na mulher, neto afrontando avô entrevado, esposa humilhando marido que não sobe na firma. Nenhuma paciência, pingo nenhum de compaixão pelo outro, isso sim, stress, só stress, agressividade. Se a mãe tira o sutiã e a calcinha no hotel cinco-estrelas, deitada de costas e de bruços no capô do automóvel e ganha por hora pelada de foto o que nunquinha vendendo plano de saúde que não cobre doença, ao filho não cabe ser obrigado a gostar de ver a mãe nua pendurada nas bancas. Mas menos ainda cabe a ele pegar estilete e corda para esganar o pescoço, colocar veneno de rato no suco de maracujá ou na compota de laranja. O Brunão era o pai autoritário da mãe.  Não aceitava que ela namorasse depois do divórcio. Não queria marmanjo entrando e saindo. Não queria ninguém. Ele o único homem na vida da mãe. A nudez só nas outras, colecionador contumaz de revista pornô. Mãe não é para tirar a roupa no hotel cinco-estrelas e fazer beicinho de puta em cima do carro. Foi rude, falou desaforo, ameaçou a Wandinha e a Wandinha deu um basta no moleque, resolveu ser a mãe, não mais a filha temente. Filho não dá ordem para a mãe. O que tem de mulher respeitável hoje em dia exibindo sem medo os pelinhos da púbis e pai mostrando orgulhoso aos amigos no bar as fotos da filha pelada! Até quem não tinha nada de se meter se meteu. Para reprovar bastavam a Neca e o Túlio. Não era preciso ainda o Omar. O ex deu toda razão ao filho, atiçou em vez de acalmar, pôs fogo, falou o que um ex não tinha que falar, se excedeu, passou dos limites, telefonou para a Neca e pressionou a ex-sogra a interferir com a Wandinha, o Brunão estava nervosíssimo com a história, ele não queria de jeito nenhum a mãe pelada na capa. A  Wandinha enfiou na cabeça que ia posar, tirar toda a roupa na frente da equipe no hotel cinco-estrelas e, se a decisão era mesmo ganhar dinheiro sem roupa, era o fim da picada interferência de ex que só atrasava pensão. Assinou o contrato e, quando teve de tirar peça por peça, não houve frescura, chilique. Não coube nenhum pudor desmedido, nenhuma negativa às indicações do fotógrafo na suíte presidencial e na rua deserta, só ela e a equipe. A equipe e o automóvel de luxo molhado. E ela em cima, encharcada! Não deu ouvidos a pai, nem a mãe, nem a filho. Ficar nua podia trazer benefícios, sim, abrir portas. Ele disse que matava. Disse! Tem gente que ouviu e depôs, vai depor amanhã. Em apartamento pequeno o que se fala se ouve, não adianta parede. Não admitiu que a mãe se mostrasse para os outros, deitada no banco da frente com a boca entreaberta, a língua um pouquinho para fora e o olhar atrevido de puta no carrão conversível. Coisa boa nenhuma vinha na frente, isso eu vi com clareza quando tiraram o filme água com açúcar e no lugar a Wandinha ilhada no carro, dentro da casa da gente, o carro enchendo de água, o temporal, a ventania e a rua deserta, só ela lá desesperada berrando nenhum puto me acode e me tira daqui?, o repórter não dando nenhuma esperança, o perigo iminente, a fúria assassina da água, a natureza impiedosa e implacável castigando a cidade e a Wandinha tão aflita substituindo a atriz, o ator, nada de beijo romântico, nada de lua de mel em Acapulco para quem estava a fim só de filme xarope, apenas a morte rondando, insensível, alheia, o fim se desenhando cruel e líquido até que, como se vindo do céu, de qualquer paraíso, da Lua, o japonezinho feioso da farmácia, que ninguém sabia ainda que era japonês (apenas um corpo na tela correndo na rua no meio do vendaval em direção ao carro, uma figura que ninguém conhecia), saiu correndo, o homem da câmera surpreso a focar o rapaz pelas costas, e entrou decidido na água suja, sem meia, descalço, gritando não se desespera, não, dona, não se desespera que eu vou salvar, vou salvar, vou  salvar, eu vou salvar a senhora!

Mario Garrone

Fotos: imagens do Google

 


2 Comentários

Ivandira de Toledo Barros

setembro 26, 2012 @ 23:54

Resposta

Gostei muito do conto de Mario Garrone.Um drama com humor, muitos detalhes,observações,caracterizações.
Um conto que me prendeu…não daria para parar a leitura…

Maurício Mellone

setembro 27, 2012 @ 16:41

Resposta

Ivandira:
O Garrone é mestre mesmo em prender o leitor em suas tramas!
Fico muito contente q tenha gostado do conto; volte sempre!
abr

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