Gil¬_@mar

De em maio 18, 2010


A luz vinda da tela do monitor projeta uma palidez azulada no seu rosto sombrio. No interior do apartamento, mergulhado na escuridão, Leo escreve seu desabafo.]
Há quanto tempo eu precisava falar com você. Venho ensaiando há meses — quem sabe anos! Mas chega numa determinada hora que o copo, já cheio, derrama… Estou aqui para contar como as coisas estão desde a sua… Bem, você sabe. Desde que você foi embora. Uma despedida sem adeus.
[Leo caminha, no escuro, pela sala silenciosa. Acende a luz do abajur. O foco de luz devasta o olhar triste. Leo escolhe um cd, que põe pra tocar. Apaga a luz e volta para o computador.]
Que semana assustadora aquela! Depois de um final de semana normal em que fizemos o que sempre fazíamos — a cerva da sexta, o sábado das compras, do cinema e da balada e o almoço de domingo, cada um com sua mãe —, desabou aquela segunda-feira terrível. A tontura, a dor, e o braço comprometido e você não conseguindo nem se vestir direito. Em menos de cinco dias você ensimesmado na cama do hospital, com aquele olhar assustado, tentando entender o terremoto que assolou sua vida! A nossa vida… E eu, mais atônito ainda, querendo transmitir força e esperança, mas sem perceber que em meus pés acabara de se abrir uma cratera.
[Leo relembra, naquele momento, meados dos anos 80, quando iniciava aquela convivência. Tomado pelas recordações, que agitam sua mente, levanta-se. Seu rosto se alegra com as lembranças, que a música cantada por Gal Costa, traz à memória. Dança sozinho, cantarolando, como fazia naqueles dias, à espera de Gilmar. Quando a música pára, volta-se para o computador.]
Meu Deus, como nós éramos felizes, naqueles anos oitenta. Eu, saindo de um casamento de sete anos e você com receio de encarar uma relação mais segura, um namoro mais sério. Graças a minha insistência, consegui fazer com que você entendesse que eu queria mais do que uma simples trepada!
Você me parecia arisco e arredio, como um bicho acuado. Mas era só uma defesa inicial. Você ficou apaixonado num estalar de dedos. Como aprendi com você! Deixei de lado muitas das amarras e das disputas, razão de brigas no casamento anterior. O seu amor me transformava. Quanta alegria, entendimento! Conseguimos crescer juntos. E, sem perceber, vivemos juntos lindos 12 anos!
[Perturbado pelas lembranças, sente a tristeza devorar sua alma. Suspira e engole o choro pra poder continuar. Levanta-se e, emocionado, perambula pela sala escura.]
Aqueles olhos verdes, aquele toque… Toque que fui forçado a esquecer pra poder continuar, vivendo. Naquela primeira semana, quando você se internou, me dividi entre o trabalho e o drama de ver você na cama do hospital, totalmente atônito por conta dos resultados dos exames.
[No centro da sala Leo fica parado, segurando o queixo com as mãos em concha. A luz da saudade turva seu olhar. Lembra-se da entonação de voz, da expressão de Gilmar, que era um misto de afirmação e interrogação, quando lhe deu a notícia.]
— Tô com AIDS!?
[Engole a emoção! Volta-se para o computador. A luz, que emana do monitor, lança uma nódoa azulada, no escuro da sala.]
Foi só o que você me disse, com aqueles olhos esbugalhados, na tentativa de me informar ou tomar consciência de seu estado. Consciência que você perdeu naquele exato momento. Nos 40 dias subsequentes, você ficou alheio a tudo. Ou já se sentia alheio a tudo o que acontecia: movimentação de médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, o carinho da tia, de sua mãe. Você não estava mais presente. Não reagia nem mais ao meu toque…
[Leo suspira. A dor da lembrança é um engasgo. Um soluço escapa de sua garganta. As lágrimas retidas deságuam.]
Já em sua casa, você me olhava e não me enxergava. Não reagia a nada, nem aos exercícios de fisioterapia, que eu fazia em seu corpo debilitado e muito menos aos meus apelos pra que reagisse. Hoje, depois de tanto sofrimento, sei que naquela hora você já tinha feito sua escolha: não queria mais viver. Ia travar uma nova luta em outra dimensão, em outros mundos!
[Leo enxuga as lágrimas e volta a escrever. A luz amena do computador se reflete no seu rosto enxovalhado pela dor.]
Quantas lágrimas, desespero e vazio. Culpa? Não sei… Não fui eu que insisti numa chacoalhada na relação. Você é que propôs que reavaliássemos nosso casamento. Eu topei a parada. Você sabia que eu não fugia mais de uma discussão deste tipo. E era uma avaliação como uma via de mão dupla: tanto eu como você deveríamos repensar nossas vidas. Mas você não quis enfrentar mais uma desilusão: já bastava a falta de horizontes profissionais, com aquela vidinha insossa do funcionalismo e a frustração em não se realizar. Você nunca admitiu que, de fato, lhe faltavam forças pra terminar o curso de psicologia, que você tanto amava. E junto disto tudo, a iminência do fim do nosso relacionamento foi a gota d’água. Você não suportou e resolveu se retirar.
[O choro embarga seu peito. A voz fica presa na garganta. Emocionado, Leo desabafa.]
Porra, foi você quem tomou sozinho a decisão e se esqueceu de me avisar! Fiquei na berlinda, sem saber o quê fazer. Por que você não me contou que tinha feito o teste de HIV? Você optou por não enfrentar a AIDS e me deixou de fora desta decisão. Por quê? Não entendo até hoje a razão do seu isolamento!
[Fica imóvel, por um momento. Suspira e volta a escrever]
Por que justamente comigo? Não bastava o Paulo, que tinha feito o mesmo três anos antes? Você tinha que tomar o mesmo rumo que ele, porra? Foi pura sacanagem da sua parte! Cara, nós enfrentamos juntos muitas manifestações de preconceito! Fomos à luta, pelo direito de amar e existirmos. E sobrevivemos! Custava lutar pela vida. O que o impediu de lutar. Culpa? Muitos doentes de AIDS são mortos pela culpa que carregam em si. Essa culpa judaico-cristã que plantaram em nós. A natureza não faz restrições ao amor. E Deus é a natureza, cara! E quanto nós dois, juntos, tínhamos falado para o Paulo reagir à doença, tomar o coquetel ou mesmo procurar tratamentos alternativos? Mas quando chegou a sua hora, você repete os mesmos erros e me abandona! Você agiu como um filho da puta dum egoísta ao me deixar aqui, sozinho!
E tem mais uma coisa. Engoli calado, mas agora vou desabafar: você pulou a cerca e me traiu! Do contrário como você se contaminou? E eu: será que “estou limpo” nesta história? Qual a garantia de que não estou contaminado?… O teste, eu sei; mas cadê coragem pra enfrentar esta dura verdade?
[Demonstrando irritação, Leo chora. Caminha sem rumo pela sala. Respirando fundo, tenta recompor sua calma. Vozes longínquas de mulheres e homens se intercalam na sua cabeça. Leo senta-se e recomeça a escrever.]
Viúvo: que sensação mais louca! Nas primeiras semanas, muitas providências práticas me exigiram concentração e tomada de decisões. A cabeça precisou funcionar, deixando o coração em segundo plano. Liguei o piloto automático. O vazio só transpareceu muito depois. Dormir só, naquela cama, que em pouco tempo ficou imensa, era um martírio! E como era difícil o contato com a sua mãe, sua tia, suas irmãs e seus sobrinhos! Eram emoções conturbadas: queria ir até a sua casa na ilusão de te encontrar. Mas ao ver sua mãe, dava de cara com a realidade: você não estava mais entre nós e eu precisava dar força a ela. Ficava lá o tempo todo segurando o choro: ver suas fotos no porta-retratos quase punha tudo a perder! Ao sair de lá, me debulhava em lágrimas na direção do carro! As pessoas, acho, não entendiam nada!
Isto aconteceu inúmeras vezes, até o dia em que meu terapeuta me proibiu essas visitas. A cada ida à sua casa parecia que eu piorava e me entristecia ainda mais. Decidi, então, falar com sua mãe somente pelo telefone: assim sofríamos menos. Porque tenho certeza também que a Dona Yolanda gostava de me ver, mas eu era, e ainda sou a lembrança viva de você! E com o tempo — um tempo muito particular – não mensurável — o mundo voltou a girar. Pelo menos eu achava isto. Que nada! Nem alguns porres, umas boas trepadas, nada! Ficava sempre um vazio, um oco aqui no peito! E volta e meia me via chorando ao ler um bilhetinho amoroso que havia recebido de você ou com uma foto com seu sorriso contagiante. Isto tudo até aquele dia em que você veio me ver.
[De repente a tela do computador se apaga. Fosse um blackout. No canto oposto da sala uma luz forte e azulada resplandece, na forma de um vulto.]
— Me perdoa? Preciso do seu perdão, Leo.
[Leo não sabe de onde vem a voz que parece ecoar dentro do seu coração. Mesmo sentindo-se confuso, Leo indaga à voz, que ressoa abafada, aos seus ouvidos, feito um pensamento, troando na sua cabeça. Uma sensação de frio percorre seu corpo.]
— Gilmar? Gilmar! É você? Não acredito!
[Leo não sabe o que fazer. Nunca lhe passara pela cabeça a idéia de conversar com mortos. Ele sempre desdenhou das pessoas que confessavam sua crença em espíritos e almas do outro mundo. Mesmo sentindo-se confuso, Leo se põe a conversar com aquela voz que não sabe de onde vem. Uma aragem fria desprende-se do foco de luz, provocando um forte arrepio.]
— Eu só posso ir embora se você me perdoar. Eu já o perdoei!
— Mas perdoar o quê? Por você ter ficado doente? Por ter me traído?
[Leo tem a impressão de ver o vulto azulado, que possui a transparência duma safira, balançar a cabeça, afirmativamente.]
— Quero o seu perdão!
— Mas eu nem quis saber como você se contaminou. Isto não iria trazer você de volta para mim. Estávamos em crise, mas quantas a gente já tinha superado? Aquela podia ser mais uma.
— Mas você me perdoa?
— Perdão por ter me deixado aqui sozinho?
[De novo, Leo tem a impressão de que viu o vulto irradiado dum azul, que lembra um mar profundo, confirmar, com a cabeça.]
— Também por isso.
— No começo fiquei muito puto, não aceitava a nossa separação. Agora sei que você quis partir em busca de seu destino. Estamos em planos diferentes hoje, né?
— Que alívio me dá sua compreensão. Eu já estou bem, só não suporto vê-lo sofrer tanto assim. Reaja, você tem uma vida pela frente!
— Preciso refazer minha vida… Perdoar você é importante, pois abrirá espaço pra eu guardar em mim o que houve de melhor entre nós dois. Estou sofrendo porque sinto saudade, falta do seu carinho. Parece que não sei viver sem você ao meu lado. Mas só em saber que você está bem, isto me alivia.
— Agora posso seguir meu destino! Leo, não podia partir sem falar com você. Precisávamos desta despedida. Fique em paz, meu amor!
— Eu também só desejo que seja feliz onde você estiver. Vou reconstruir minha vida, mas saiba que você será parte de mim pra sempre! Gilmar, não vá ainda, tenho tanta coisa pra contar!
[Num impulso, Leo corre na direção da imagem indistinta, que tem a cor de um céu sem nuvens. Com as mãos trêmulas, alma em prantos, tenta alcançar o vulto do amado, que se esvaece no ar].
— Gilmar, não! Por favor, não vá! Preciso falar que eu te amo! Se eu não falei isto antes, agora vou gritar: EU TE AMO!
[No tampo de vidro do aparador, perto do porta-retratos, que emoldura o rosto sorridente de Gilmar, há gotículas aniladas de vapor de água, justo no lugar que luziu aquele vulto de semblante tão familiar.

Ilustração: Ricardo Castro Pereira

Conto, extraído e inspirado na peça teatral amor@ceu, ganha aqui
edição fraterna do escritor ZA Feitosa.

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12 Comentários

Luiz

junho 22, 2011 @ 15:37

Resposta

Mauricio,

Achei muito bonito…emocionante.
Pena eu não ter tanto talento e facilidade assim para escrever.
Está tudo aqui flutuando emj mim mas é muito dificil colocar no papel.
Beijos,

Luiz

Maurício Mellone

junho 22, 2011 @ 16:02

Resposta

Luiz:
Obrigado pelos elogios.
Mas escrita, como se fala sempre, é inspiração com muita TRANSPIRAÇÃO!
Precisamos treinar e treinar e treinar. Boa sorte e que o seu blog ou livro
cheguem logo ao público!
bjs

Pedro Cordeiro

janeiro 11, 2011 @ 15:44

Resposta

Linda homenagem ao Gil e a você pela intensa história que construiram em 12 anos de convivência.
Não há como não se emocionar e lembrar do tempo em que essa história aconteceu.
Fiquei tocado, emocionado e certo de que as gotículas aniladas no tampo do aparador são a certeza de que o amor vivido entre vocês será eterno. Independente dos futuros romances que estão por vir. Pode acreditar!!
Beijos do amigo Pedro.

Maurício Mellone

janeiro 11, 2011 @ 16:20

Resposta

Pedro:
Que delícia receber seu comentário, e justamente para este post, que só de te responder,
me emociono tb! Vc foi um amigo-cúmplice de toda aquela história e viu tudo por dentro!
Obrigado pela força e incentivo! Volte sempre por aqui e espalhe a notícia!
Bjs

Soraia

junho 21, 2010 @ 12:59

Resposta

Embora a gente nunca estaja disposto a viver despedidas, principlamente de quem se ama, a tua história é muito intensa, dramática e colorida, talvez….os questionamentos, reflexões e a saudade seja uma forma de dar continuidade a este lindo romamce.

Gostei do blog irei visitá-lo com muito prazer.

Maurício Mellone

junho 21, 2010 @ 16:10

Resposta

Soraia:
Que os amigos gostem do conto e se lembrem daquele que motivou a história, me deixa muito
feliz!

Edu

junho 15, 2010 @ 18:51

Resposta

linda mensagem , toda historia de amor nao tem fim tera continuaçao……… parabens q este blog te traga boa sorte beijao

Maurício Mellone

junho 15, 2010 @ 19:09

Resposta

Obrigado pela força!

Maurílio

junho 14, 2010 @ 16:57

Resposta

Mellone, não consegui não ler Gilmer novamente.
Que saudade!!
Realmente aquele soriso era tudo!!

Maurício Mellone

junho 15, 2010 @ 19:10

Resposta

Que bom que novamente o conto te emocionou e te fez lembrar do meu amor!

Nanete Neves

junho 10, 2010 @ 17:30

Resposta

Nossa que lindo, uma lavagem emocional e delicada. Fiquei emocionada e também com saudade daqueles olhos claros e vivos.

Maurício Mellone

junho 11, 2010 @ 18:28

Resposta

‘Aqueles olhos claros e vivos’, quanta saudade eles também me trazem! Escrever o conto e a peça foi a forma de homenageá-lo!

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