Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 1

O Mal que nos Arruína: conto inédito de Mario Garrone

De em março 14, 2014

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 1

Novamente tenho a honra de publicar conto inédito de Mario Garrone aqui no blog. Já disse a ele que em breve teremos número suficiente de contos para um livro — este aqui é o 11º. Sempre com personagens muito bem delineados, O Mal que nos Arruína volta a enfocar mistério, inveja e morte, desta vez dentro de uma família pouco convencional: Doutor Lúcio é negro e médico que se apaixona e casa-se com Blandina, uma mulher branca e que vivia no puteiro até então. O casal perde a primeira filha, que nasceu ‘clarinha’, e a segunda, Lana, a que vingou, é negra e a mãe “nunca se deu” com a menina. Os conflitos só se acirram quando a garota se apaixona por Wanderlei, um rapaz branco e “preparadíssimo para o mundo corporativo”. Fique atento aos detalhes, pois o autor menciona o crime, mas o desfecho fica para o leitor imaginar. Boa leitura e deixe seu comentário ao final.

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 2

Mario Garrone, escritor e jornalista

O Mal que nos Arruína

Um sentimento abjeto tomou conta de Blandina, ela lá de calcinha e sutiã na sala, o suor escorrendo pelo corpo e uma expressão de quem tinha na alma uma vastidão de tormento e fúria.

Se não houvesse a maldade, outra história ou história nenhuma. Às vezes é melhor não haver nada, se o nada significar a vida em concordância, se o nada for a ausência de conflito, a não história, a história que não precisa ser contada, por tão banal e pacífica. Dizem que sem haver desejo ninguém se decepciona nem fracassa, o negócio é não ter sonho. O desejo é todo o mal que nos arruína.

A única salvação viria por meio da bondade. A única subversão verdadeira seria encher o coração de amor (eu sei que se o Eusebinho estivesse aqui e me ouvisse diria que eu sou sentimental e brega, que a história dos homens sempre foi um faroeste vergonhoso e assim será um bangue-bangue truculento e sanguinário até o fim dos dias).

Blandina nunca se deu com Lana. Lana não era a filha que ela queria. A que ela queria (ou aceitava pela semelhança) morreu cedo, o caixãozinho branco, a dor e a perda por causa da meningite meningocócica.

Doutor Lúcio não via com bons olhos (não poderia ver!) a pequena atenção dada à menina nas poucas horas em que ele estava em casa e por vezes chegou a dizer que mãe assim antes nenhuma. Sair com a bebê na rua, quem senão Dora, a empregada? Voltas no quarteirão, idas à praça? Até levar à escola, Lana com três anos, raramente Blandina. Incumbência da babá o leva e traz, tanto que não poucos chegaram a crer que era ela a mãe da criança.

Se Blandina tinha amante ninguém viu nem flagrou. Saía bastante, isso saía, mas para onde, se não tinha nada a resolver, dona de casa desde que casou? Idas aos shoppings, às igrejas, benemerência, voluntariado nos asilos, nos hospitais e nas creches, flertes pelas ruas, mais uma bela da tarde à solta, qual era a encrenca? O tempo cada um ocupa e mata como dá e ela tinha empregadas e horas livres à beça, ficar trancada em casa não era com ela, dava-lhe comichão e náuseas.

Doutor Lúcio, para muitos um moleirão depois de casado, podia ter lá suas cismas, mas, a seu modo, amava Blandina e o amor fez com que

não visse. Ou viu e preferiu fechar os olhos para não ter de dar razão tardia ao pai: Essa aí não é mulher que se apresente à mãe!

Preponderantemente moleirão depois, o doutor Lúcio foi decidido, audaz e corajoso na época do namoro rápido, tanto que, contra todos, levou a coisa adiante, deixando os pais desconsolados (o desconsolo aos poucos perdeu sua força e, para não ver o filho único se afastar de vez, renderam-se).

Não houve igreja nem festa. Apenas a cerimônia civil no cartório, dona Quintina e seu Prudêncio frustrados, mas lá, os sonhos indo todos para o ralo.

Porque estava livre do sentimento paralisante de amar alguém, porque não havia a paixão que desestabiliza a pessoa, Blandina topou casar. Surpreendeu-se com o interesse incomum do cliente quase toda noite lá, sua maneira carinhosa e afetiva (que homem mais naquela cidade do interior dos
infernos convidaria uma puta a se mudar para São Paulo e ser sua?). E, de mais a mais, não era um homenzinho qualquer que a queria.

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 3

Bonita sem que a beleza fosse muita, capaz de ser discreta e comedida sem as pinturas excessivas e as roupas justas, magistério semicompleto, sem pai nem irmãos, só uma mãezinha, ressentida, com quem não se dava (nem ao cartório ver a filha casar a dona teve o trabalho de ir).

Médico, médico, vá lá, médico. Mas negro! Negro, olha só! Negro! Só uma mulher sem compostura que não se dá ao respeito e que perdeu toda vergonha na cara. Sorte do seu pai que está morto (dona Eureca, a mãe catolicíssima de Blandina). E, fora isso, sem igreja e padre não é casamento. Eu não considero! Não aprovo!

Para se ser uma pessoa boa custa. A virtude só vem com esforço, disciplina, empenho e suor. A maldade se alastra naturalmente. Alguém vir a ser bom só com muita vontade. Para se ser um sujeitinho mal e egoísta, isso qualquer um consegue. O mal está sempre ali à espreita do cara, pronto para uso e abuso.

Doutor Lúcio viu seu coração transbordar de amor quando encontrou Blandina. Desde então foi um tal de ir e vir e vire e mexe voltar ao puteiro, o amor só crescendo, uma necessidade exagerada de ver a moça e tirar a moça do casarão da Shirlei, dar-lhe um lar, livrá-la da sujeira dos homens.

Sonho de criança quase improvável, quimera longínqua socorrer, aliviar as dores e oferecer a cura bendita. Desde menino a ideia de cuidar dos doentes, de ver as vísceras, as entranhas, o que está dentro do corpo, abrir a barriga e ver, sentir o cheiro, a textura. Uma graça na família ouvi-lo dizer que nem engenheiro nem motorista, o menino estudioso só queria ser cirurgião, ver os rins, o coração, tocar no fígado, pôr as mãos no estômago, saber direitinho como funciona tudo que Deus fez, porque para ele Deus tinha feito tudo. O pai e a mãe achavam dificílimo que vingasse, duvidavam que viesse a ser possível, que o filho realmente fosse se tornar. Nem por isso pouparam esforços. Desdobraram-se ao excesso (ela na costura, ele consertando sapatos e fazendo toda espécie de bico).

Blandina não sonhava em casar, ter marido, essas coisas, ser mãe, cuidar de bebê, lavar fralda, dar seio para criancinha chorona mamar (o mesmo seio sugado pelos homens com dente e sem dente, todos louquinhos para lamber-lhe os bicos que um dia seriam só do doutor Lúcio e das recém-nascidas famintas). Sonhava com cliente educado, cortês, carinhoso, de banho tomado e com colônia, feio que fosse, barrigudo, esquelético, isso não conta, mas que lhe desse um pouco de atenção antes e depois do ato, não homens brutais, mas sensíveis. Esse sonho ela tinha e as colegas achavam querer muito: Homem educado e asseado não trepa!

Lana cresceu com saúde, a irmãzinha conhecida só nas fotos, Lana vindo ao mundo pouco depois do caixãozinho no fundo da terra, Blandina quase a parir no enterro (até dona Quintina e seu Prudêncio tiveram um pouquinho de pena da nora infeliz no velório chorando, apesar de ela dar a entender para alguns que valera de nada ter pai médico em casa. Como se fosse obrigação de pai médico impedir a todo custo que Vidinha morresse, como se fosse inadmissível).

À dona Quintina e ao seu Prudêncio coube consolar o filho e dizer que, se Deus quer, não tem pai médico nenhum neste mundo que evite o óbito, Deus é soberano e inquestionável (o casal chegou a acreditar que a partir dali, com a menina morta, o casamento degringolasse e eles dois não fossem mais obrigados a conviver com Blandina).

Uma menina branquinha como a mãe. A mortinha alva no caixão aos quatro e a negrinha na barriga em vias de ver a luz deste mundo de sombras e trevas. Lana a única. Mais nenhum feto em seu ventre a partir de então.

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 4

Blandina não se via na filha, não conseguia se ver (ou não queria, era contra), filha de outra, não dela. Não encontrava nada de si na criança. Uma rejeição que incomodava o doutor Lúcio, um comportamento visível de indiferença, uma distância entre as duas. Muito mais mãe Dora, a babá negra que dava carinho e atenção. Todo aconchego veio de Dora e do doutor Lúcio, pai amoroso e protetor (ainda que tivesse pouquíssimo tempo para a filha). No que dependesse de Blandina era dado à menina o mínimo: uns sorrisos econômicos, um raro carregar de colo, uma brincadeira esparsa, esporádica, um passeio zás-trás até a esquina, uma ida, nos dias quentes, à sorveteria mais próxima, um presente, uma boneca loira.

Lana cresceu e ao crescer bonita deixou de permitir que a mãe lhe alisasse os cabelos ou lhe fizesse os coques das bailarinas. Com o apoio do pai, deixou a cabeleira afro ao natural, o volume livre, solto.

Para sujeitinho ser ruim é tiro e queda, quase nada dificulta, a maldade e a bandalha são de livre acesso, não requerem experiência nem habilidade, está tudo perfeitamente ali à mão de graça. A bondade, essa sim, exige, é preciso não se fechar em si e abrir-se, olhar o outro e ver. Só mesmo se o carinha estiver a fim de dar um basta no que lhe vai dentro de putrefato e pestilento. Se deixar a coisa ao bel-prazer, o que sai, o que vem é um só querer pensar em si, unicamente em si. A felicidade relativa do outro (porque a completa talvez nem morrendo) é um incômodo para quem não é bom, para quem sente inveja e quer mais é que o outro afunde. É como se o outro fosse minimamente feliz para agredir quem não se acerta e é triste, quem acorda todo dia cansado e com tédio e acha a vida uma espécie de rio poluído fedorento indo com a correnteza para lugar nenhum que preste.

Enquanto Lana namorou só rapaz negro, Blandina nem aí, uma mulher que continuava a não se ver na filha de cabelo pixaim, a se sentir de fora, a não ser parte da casa.

Até que ponto inveja, até que ponto ódio e vingança? O que traz a desgraça é a falta de bondade (eu sei que eu já disse, mas não custa repetir). A escassez, a inexistência do bem e da graça.

Wanderlei era branco. Como podia ser negro (apesar de ser dificílimo CEO negro por aí dando as cartas). Como negros eram os quatro namorados anteriores de Lana.

Branco e CEO, divorciado, sem filhos, exímio no inglês, espanhol e chinês (disseram), preparadíssimo para o mundo corporativo, para a selva que é ter de estar sempre na crista e dar conta de todas as metas abusivas.

Doutor Lúcio não achou apropriado o comportamento expansivo de Blandina quando o CEO Wanderlei visitou pela primeira vez a casa. Havia uma saliência na mulher, um exagero no trato, um agrado excessivo ao namorado branco da filha. Lana também estranhou a imprevista amabilidade da mãe.

Lana poderia nunca ter sabido. Morando em São Paulo, era difícil encontrar quem soubesse. A família da mãe era só a avó Eureca (avó que viu a neta negra uma única vez em criança, não gostou do que viu e não teve a iniciativa do beijo). Do lado do pai tinha mais parente, mas, com a ida de dona Quintina e seu Prudêncio para viver na mesma cidade do filho, o interior ficou lá afastado. Quase arquiteta, faltando um ano, Lana conheceu o CEO Wanderlei numa festa e a paixão foi crescendo.

(Os doentes é sua obrigação salvar, não as putas. Médicos negros tem quantos aqui no Brasil, quantos? O que eu ralei, o que a sua mãe! Para no fim se formar e se engraçar com uma puta?)

Doutor Lúcio não conheceu o amor recíproco. O tempo todo amando sozinho, sem volta, Blandina apenas cumprindo mal o papel. Amor ferido, desprezado, uma grande decepção para o médico cardiologista. E, se não fosse o bastante, mais aquela de a mulher se mostrar tão cortês e desinibida com o CEO, nenhum pudor diante dele e da filha.

Com o amor reduzido, talvez nem resquício do que fora, ele saiu do seu estado complacente e molenga (moleirão!, diziam uns. Manso!, diziam  outros): Você me respeite. Eu exijo! A mim e a sua filha. Não vou admitir, compreendeu? Dou-lhe no meio da cara! E Blandina: Dá! Quero ver se dá mesmo, se é homem para dar. Dá que eu te processo, faço corpo de delito, te ponho no pau. O doutor Gastão te deixa sem calça!

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 5

Eu esconderia até a morte, meu bem, não fosse o que há, o que vem sendo, o que você me conta com dor, o que não é possível que se admita (dona Quintina diante da neta, uma maçã vermelha nas mãos prestes a ser comida com gula). Sua mãe, querida. Sua mãe nunca prestou na vida.

Não sei por que seu pai foi cair de amores por ela. É tão triste para mim te dizer. Uma puta ordinária, minha filha, biscatinha do antro da Shirlei, meu bem. Ia com todos os homens, entende? Com todos!

Ah, a bondade se houvesse no tanto, na quantidade, poderia salvar, ser a cura, o consolo, dar alento, tornar doce o azedo, macio o que é áspero, cheiroso o que fede! Isso digo eu na minha ignorância e o Eusebinho, se aqui estivesse, rebateria de pronto: Ingenuidade sua, idiota! O futuro será sempre igualmente ruim. Na essência nada muda. E, ainda que mude, permanece o mesmo cocô!

Wanderlei, o CEO, tentou ignorar e passar por cima das investidas da sogra e, aparentemente, só tinha olhos para Lana, ainda que Blandina fosse toda cuidados e atenção desmedida, um mimo, uma falta de cerimônia danada em querer ser o centro, atrair o rapaz só para si (e tudo piorava bastante depois dos primeiros goles de uísque).

Lana esperava que o pai agisse sem que ela precisasse se impor diante da mãe. Que pusesse um fim naquilo. Abalada, não sabia o que fazer com a verdade ouvida da avó.

Única filha a enterradinha, a morta aos quatro, de pele clarinha e narizinho fino, fotos espalhadas pelas paredes, em cima das cômodas, das mesas, no espelho do quarto?

Ainda te dou nessa cara. Só eu amei. Unicamente eu! Te tirei da sujeira contra todos porque eu te amava. E de você recebi o quê? Se não é capaz de respeitar a mim, que respeite a sua filha. Não vou admitir que (doutor Lúcio, sem completar a frase, nervosíssimo, controlando-se para que a agressão não fosse mais do que tão somente verbal).

Humilhada pela mãe dentro de casa e obcecada pelo CEO (o amor só crescia!), Lana não quis mais se conter (ou não pôde). Se o pai não fazia o que tinha que fazer (ela nada sabia das cenas consecutivas em que o tapa esteve a um passo do rosto), esperaria até quando para dar um basta na coisa infame? (Wanderlei ia cada vez menos lá por decisão de Lana, encontros mais fora do que dentro. Mas era Lana recebê-lo uma noite depois de semanas e tudo de inconveniente e absurdo voltava).

Encontrou a mãe sozinha deitada no sofá de sutiã e calcinha (o calor era mesmo horroroso) e o escarcéu tomou corpo, veio todo, um desmanche, um desmoronamento completo (para dizer o que diria e ser cruel como se achava no direito, bebeu vodca, bebeu pinga, ela tão avessa ao álcool!)

— Não se meta mais a besta comigo!

— Como é (Blandina, suadíssima, apesar da pouca roupa, sentando-se abruptamente no sofá)?

— Não vou mais tolerar, está me ouvindo?

— Não se fala com a mãe nesse tom. O que deu em você? Isso é modo?

— Não se meta com o Wanderlei, estou te avisando!

— Você cala essa boca. Não admito que uma filha me venha

— Quem não admite sou eu.

— Pensa que está falando com quem, atrevida?

— Eu sei. Sei tudo de você. Sei tudinho

— O que é que você sabe de mim, infeliz?
— Não se faça de besta!

— Dobra essa língua suja para falar comigo. Comigo você não fala assim, não fala. Eu te proíbo!

— Você que não tente mais se meter com namorado meu. Eu tenho vergonha de você. Vergonha!

— Vidinha morta tão cedo e você aí viva. Se tivesse sido você, e não ela.

— Prostituta!

— Você cala essa boca nojenta!

— Prostituta, prostituta!

— Não se atreva!

— Prostituta!

—Eu te parto essa cara preta!

— Puta! Puta ordinária! Não brinca mais comigo, estou te avisando.
Blandina viu assim de repente o passado voltar como um raio e o chão se abrir sob seus pés úmidos descalços ao som da voz da filha irada, que se foi batendo a porta da rua, deixando a mãe a falar sozinha uma sucessão de coisas virulentas e desconexas, um olhar de assombro que daria medo a quem visse.

O que veio foi triste. Triste e brutal, como brutal há de ser tudo o que vem com ódio, rancor e vingança. Tudo o que mata, destrói e assassina. O que torna nossa vida mais árdua e dura. Mais dura e sombria. E solitária.

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 6

Eusebinho riria ou mostraria seu sorriso cínico e cético, aqueles seus dentes amarelos de charuto, se me ouvisse contar e lamentar o que houve de horrível com Blandina, Lana, o CEO e o doutor Lúcio, isso eu sei, isso é ele, Eusebinho não crê que haja saída para nada. Ele não tem esperança nenhuma no homem, na mulher e na criança e sempre se mete a discorrer, toda vez que a oportunidade aparece, mesmo que a oportunidade seja a mais imprópria e inoportuna (como em um velório com muito choro e revolta), sobre a miséria humana e todo o nosso histórico lamentável e extenso de abominações e horrores. Nenhum mal que se cometa no mundo o espanta (ou ele diz que não o espanta e se borra), nada de ruim vindo do homem o surpreende, isso ele fala. Nem mesmo a coisa mais vil e repugnante. Toda vileza lhe é previsível, e às vezes lhe é mesmo insignificante, se comparada a vilezas muito piores ocorridas aos montes no curso da história, mas não da história dada nas escolas, ele sempre gosta de frisar, que essa aí é fajuta, omissa, os professores e os diretores dos colégios têm medo e pudor de revelar aos jovens a verdadeira dimensão, o peso e toda a enorme importância que o mal sempre exerceu em todos os períodos de vida da espécie humana na Terra.

Houve choro intermitente (como é comum que haja), houve revolta da mãe e do pai de uma forma que nem sempre, houve gritos. Lana não foi bem-vinda ao chegar ao velório com o pai taciturno, era persona non grata. Nenhum dos dois, constrangidos, foi recebido senão com olhares reprovadores e interrogativos (como se ali não fosse um lugar onde eles devessem ter se atrevido a pisar). Não contou de nada a dor intensa e sincera de Lana estampada nos olhos vermelhos. A chegada causou desconforto geral (ou ao menos aos que sabiam ou imaginaram quem eram aquelas duas pessoas negras bem vestidas se dirigindo ao caixão lacrado, já que os tiros acertaram bem na testa, no nariz e na boca).

Dona Dalila, a mãe do CEO, tão logo se deu conta da entrada dos dois, permaneceu estática e muda, tendo paralisado, inclusive, o choro convulsivo. Em seguida saiu do silêncio e gritou: Não admito que ninguém da família maldita da assassina bandida venha rir da minha cara. Eu proíbo! Que saia já toda corja ou eu chamo a polícia. Quantas vezes eu disse ao Wanderlei que procurasse outra moça, essa não! Mãe sabe o que não presta para o filho! Fora já daqui! Fora já, sua!

Amparada pelo doutor Odinei, o marido engenheiro, também revoltado, depois de humilhar e expulsar Lana e o pai, dona Dalila voltou a chorar em meio ao burburinho que se fez de imediato, àquela sinfonia de vozes agudíssimas e graves.

Não, Eusebinho não perderia a chance (ele nunca perde a chance de ser inconveniente e óbvio).

Doutor Lúcio e Lana, às lágrimas, no carro indo embora e o zunzunzum tomando conta do velório. Tantas vozes indignadas pelo assassinato do jovem CEO, tantas explanações condenatórias e reflexivas sobre a violência contemporânea das grandes e pequenas cidades, e no meio das vozes, em uma rodinha só de homens, uma, infelizmente, era a dele:

Conto de Mario Garrone: O Mal que nos Arruína, foto 7

 

Ah, meus caríssimos, não que eu não entenda a dor da família, isso longe, longe de mim, mas o fato é que eu nunca deixo de me espantar e ficar boquiaberto com a reação das pessoas diante das intempéries da vida. Custa-me crer que, mesmo tendo sido possível haver, infindáveis vezes na história, a prática institucional diária do mal absoluto no mundo (na Alemanha, na China, no Congo do sanguinário rei belga, na União Soviética, no Camboja e mesmo aqui em nossa terra criminosa e nos States em séculos de escravidão negra, para citar só alguns casos de total abismo, que listar todas as excrescências demandaria tempo excessivo, abundantíssimo, e não seria o caso neste momento que antecede o enterro), ainda não estejamos de todo calejados e acostumados ao mal intrínseco da espécie e ainda nos provoque surpresa, comoção e asco o que nos deveria ter sido há muito tempo assimilado: somos bichos, meus queridos, nada mais do que bichos. E ferozes!

Mario Garrone

Fotos: imagens arquivo Google


6 Comentários

José Renato de Almeida Prado

março 17, 2014 @ 16:16

Resposta

Parabéns ao Mario Garrone por mais esse conto vigoroso. Seus personagens são sempre intensos, viscerais. Mais um belíssimo gol!

Maurício Mellone

março 19, 2014 @ 09:53

Resposta

José Renato,
Concordo com vc em gênero, número e grau! rsrssr
O Garrone nos brinda com histórias instigantes e personagens vivos e viscerais (como vc disse).
Volte sempre, é um prazer receber a opinião dos leitores/internautas!
obrigado
abrs

Marcelo Brettas

março 15, 2014 @ 09:53

Resposta

Que bom acordar e ler mais um Mario! Estilo muito próprio, forte e muito vivo… mesmo na morte! Que venham sempre outros!

Maurício Mellone

março 15, 2014 @ 19:40

Resposta

Marcelo,
o Garrone só nos enche de orgulho! De termos convivido com o talento dele nos bancos
universitários e agora usufruirmos do escritor criativo e intenso de hoje!
Obrigado por sua participação
bjs

Dinah Sales de Oliveira

março 14, 2014 @ 18:09

Resposta

Maurício,
Como sempre, o texto do Mario é uma faca afiada!
Nesse estilo inconfundível, que dá voltas e pega o leitor de jeito…
Daria uma bela minissérie!

bjs,
Dinah

Maurício Mellone

março 15, 2014 @ 19:43

Resposta

Dinah,
concordo com vc! Ele nos pega no contrapé! rsrsrs
E os personagens dele tb sempre me deixam impressionado:
muito bem delineados e vivos, como disse o Marcelo aí em cima!
bjs e muito obrigado por sua constante e calorosa visita!

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