De em setembro 29, 2011
Que alegria em poder abrir este espaço para lançar um conto inédito de Mario Garrone, jornalista, escritor e amigo dos tempos de universidade! Mario nunca quis ser repórter, redator ou editor: optou pela revisão para o seu sustento com o objetivo de dedicar mais tempo para a literatura. Tem peças (ainda inéditas) e o romance O Homem Infeliz, lançado pela Imago Editora em 1998. Aqui ele nos brinda com este conto curto e instigante. Com estilo bem definido — rompe com a estrutura formal de diálogo e coloca a fala dos personagens de forma direta, sem introdução—, Mario provoca o leitor. Ficamos ávidos para desvendar o que aconteceu de fato na vida daquela família. E aqui outra surpresa: o autor deixa em aberto o desfecho! Ou melhor, deixa que a imaginação do leitor monte o quebra-cabeça que ele criou! Mário, muito obrigado por confiar no Favo do Mellone como divulgador de sua obra.
Ataliba e o gato angorá
Era um mimo danado com o gato, um xodó, um enrosco. Um tal de cuidado que nem te conto. Do que ele sempre deu para o gato, para o filho nem sombra.
Nanci não queria de jeito nenhum bicho na casa. Mas cedeu. Ou ele comprou à revelia e enfiou o gatinho no sobrado. E ela passou a dar carinho e leite.
Ataliba vivia mais tempo fora do que dentro, dando aula de caratê, de judô, de jiu-jítsu, bebendo chope, flertando descaradamente com menor de idade. Mas bateu o pé.
É claro que sem paciência não dava. Ele queria o quê? O menino talvez não aprendesse nada nunca nem andasse sozinho na rua, mas era filho e o que ele recusava para o moleque dava em abundância para o gato.
O grito que se ouviu foi medonho. Era dia de feira na frente da casa, um cheiro de peixe e de fruta, tanta gente comendo pastel!
Nanci foi contra o gato na cama. Isso ela não toleraria, em absoluto. Aquele tanto de pelo no lençol e na fronha. Um grude, sei lá, um exagero tremendo. Pois se até beijo na boca!
A dificuldade que foi para a polícia, a confusão que se formou, o tanto de mulher e de homem carregando sacola!
A gente sabe que o pai quer que o filho seja como o filho dos outros, nem um tiquinho menos, é assim que funciona, e o Lineu nunca seria igual a ninguém. Pai nunca está a fim de ver que o filho dos outros faz coisas que o filho dele não faz. O Lineu não era também a criança com que Nanci tinha sonhado, mas ela aprendeu a não sentir vergonha e acho até que amava. Amava sim. Era bonito ver a Nanci levando o filho pela mão para tomar sorvete.
O tempo que passava em casa nenhum olhar para o menino. Como se o menino tivesse culpa de não saber ler e escrever. Como se tivesse pedido para nascer só para frustrar o pai sarado.
Um gato angorá branco lindíssimo! Que maldade pode ter um gato inocente? O que haveria de fazer de ruim um bichinho tão manso?
O problema era o excesso de aconchego, o chamego além da conta, um carinho que faça-me o favor. E, com tudo isso, a maior parte do tempo o gatinho lá com a Nanci porque o Ataliba tinha que dar aula e beber cerveja.
Teve helicóptero, ambulância, sirene de polícia, o diabo. A gritaria que foi na hora mais movimentada da xepa!
Nanci nunca culpou o gato pelo excesso do Ataliba, embora sempre tenha dito para ele que ao filhinho nenhum abraço. Custava de vez em quando um carinho pequeno? O colo precisava ser sempre para o gato?
A mãe da Nanci achava um absurdo pôr nome de gente. Ninguém é contra dar carinho para animal, mas é preciso não passar do limite. Dona Nenê se recusou desde o início a chamar o gato pelo nome dado pelo Ataliba. Como se dissesse que bicho deve ser só bicho. Como se previsse.
Lineu sempre foi de repetir mil vezes a mesma coisa. Muitos preferiam evitar visitas. A mãe da Nanci ia sempre. Como avó, dona Nenê se achava na obrigação de amar o neto. Era o oposto do genro. Sei lá se por amar de fato ou se para escancarar com revolta a irresponsabilidade e a omissão do Ataliba. Há quem diga até que de todos a única a ter ojeriza pelo gato.
Ainda havia vida quando a ambulância chegou ao hospital. O coração batia pouco, mas batia. Estado gravíssimo! O médico viu logo que só um milagre.
Dona Nenê não podia. Quem sabe o marido atacado pela gota. Algum compromisso inadiável, urgente. Ou preguiça de pegar ônibus e ir.
Nanci vinha sentindo azia direto, um azedume na boca. O doutor pediu exame de sangue, de fezes, de urina, de mama, ultrassom.
A quem caberia ficar senão ao Ataliba?
A manhã começou com garoa. Se tem coisa que não presta é feira com chuva, sombrinha, carrinho, sacola. Choveu, mas passou. Na hora da xepa o sol estava lá, um abafado horroroso. Mas pior foi o grito.
Como Ataliba ninguém. Mas com o tempo qualquer um pega amor e tanto Nanci como Lineu gostavam do bichinho. Um olho azul e o outro verde.
Qualquer coisa lá que impediu a dona Nenê de ocupar o lugar da Nanci e a Nanci com horário marcado na clínica.
O gato era manso de tudo e era uma satisfação para o Ataliba exibir na rua o angorá aboletado no ombro.
Mais nenhuma chuva na hora. Uma mudança de tempo e um tropé.
Ataliba quis pastel de palmito e garapa na banca do japonês. Depois mais dois. De queijo e de carne.
Um pouco nervoso, às vezes, Lineu, mas normalmente calmo. Se bem quê.
Sei lá se de novo o probleminha nos quadris da dona Nenê, se as varizes.
Só o que é certo é que a coisa horrorosa teve início enquanto Ataliba bebia caldo de cana na feira e comia um pastel atrás do outro e a Nanci vinha voltando para a casa depois de passar a manhã inteirinha na clínica.
Se uma criança é boba e não pensa, nem assim deixa de ser triste. Corta o coração de qualquer um ver um menino fazer o que nenhum menino em hipótese nenhuma.
O primeiro foi o Durval. O de bigode, o que manca. Já teve encrenca com o Ataliba e mantinha distância. Achou esquisito. Morando do lado era fácil. Mas ver o que era nem em sonho. Ligou para a polícia.
O Durval o primeiro, mas não o único. Soraia sentiu arrepio e disse que tentou não ouvir, mas era impossível ignorar os gritos pavorosos que vinham da boca de uma criança.
Alguma coisa horrível acontecendo na casa. Isso teve certeza não só o Durval e a Soraia, mas logo também Iraci. Pois se mesmo dona Ismênia, que é surda!
Lineu com o pobrezinho do gato e o Ataliba, sem nenhum juízo na venta, grudado na banca do Osaka.
O doutor Evaristo saiu no portão e em seguida o alvoroço tomou conta da feira.
Amor pelo filho não havia. Nunca se soube de um beijo. O pai quer um filho que joga, namora e xinga e o Lineu não podia nem ficar sozinho em casa. Iria ser para sempre um menino fazendo pergunta.
Ninguém lhe tira o direito de ter ficado chocado, ora essa. Isso qualquer um que viu depois o estado deplorável do bichinho. Mas daí a, convenhamos.
Até Doralice, que odeia bicho, chorou quando entrou na sala e viu o descalabro, se bem que é difícil saber se a lágrima foi pelo gato ou pelo que houve depois de o Ataliba voltar para casa empanturrado de pastel e garapa.
Mario Garrone
Fotos: divulgação
8 Comentários
mauricio miele
abril 1, 2012 @ 17:56
Misteriosos são os caminhos no texto do Mario, e no reino do hipertexto.
E eis que navegando sem porto definido- Seneca não estava de todo o certo – cheguei num bom lugar! Encontro numa mesma página comentários de dois amigos: Zédu, vizinho eterno do Mantiqueira, e Giacomo, zagueiro assim como eu do Mangue.
Achei o conto fantástico, várias possibilidades de leitura, diizendo muito dentro daquele cotidiano que de repente implode e em muitos pedaços a gente acha uma jóia.
O blog foi para os favoritos aportarei aqui com frequencia.
Mellone, por favor passe o meu e-mail para o Giacomo e para o Zédu também.
De uma passada de olhos no meu blog, partilhamos do mesmo mel.
abraços
Maurício Mellone
abril 2, 2012 @ 16:36
Xará:
Que delícia receber seu comentário. E que coincidências: sou amigo do Mario desde a faculdade,
o Zedu conheço também há anos e o Giacomo tive a sorte de conhecê-lo por intermédio do Mario!
Os três colaboram aqui no Favo, para a minha honra! Se vc puder, leia os demais contos do Garrone
já publicados aqui, além dos poemas do Giácomo e dos textos maravilhosos do Zedu!.
Vou conhecer seu blog e passaremos a ‘trocar figurinhas’ virtuais!
abr e volte sempre!
Zedu Lima
outubro 6, 2011 @ 12:13
Maurício,
Li o conto do Garrone e gostei muito, principalmente por ele não revelar quem é que fez o que, deixando em aberto, criando um mistério, o que pode dificultar o entendimento de algumas cabecinhas do ‘nosso público leitor’ que, cada vez mais, tem menos vontade de pensar e quer tudo explícito.
abr
Zedu
Maurício Mellone
outubro 6, 2011 @ 12:19
Zedu:
O interessante do conto ‘Ataliba e o gato angorá’, do Mario, é justamente o aspecto
que vc ressalta: provocar o leitor e fazer com que ele releia o texto e crie o final da história.
Obrigado por sua constante presença aqui! E não poderia ser de outra forma, já que é
o padrinho do Favo!
bjs
giacomo leone
outubro 3, 2011 @ 20:05
Infelizmente, meu caro Maurício, neste país, só há espaço para literaturas rasteiras, tipo paulos-coelhos da vida, sabe?, literatura paulo-coelho. Mas o que me consola é saber que esses best-sellers nunca, nunca, serão um clássico. Eles podem vender como água no deserto, tipo audiência de novelinha das oito, mas nunca terão o reconhecimento da Alta Crítica, tampouco serão estudados nas academias de Letras, mesmo que a incoerente e decrépita ABL insista em brindar essa literatura medíocre com aquelas cadeiras velhas e sem verniz. Obrigado e Parabéns por este blog, cara! Grande abraço! Em breve, entro em contato para publicar uns arremedos de poesia, certo? Ahahahah. Abraço grande!
Maurício Mellone
outubro 4, 2011 @ 14:37
Giacomo:
Respondi a vc e insisto: o Mario poderia publicar sua obra
na plataforma virtual (e-book). Liberdade total para
publicar e possibilidade de retorno financeiro maior q se
ele publicar em editoras tradicionais. Espero q vc engrosse
a campanha para q os leitores possam conhecer a obra dele!
abr e vou adorar poder publicar algum poema seu!
Maurício
giacomo leone
outubro 2, 2011 @ 22:00
Adorei!
Um conto ágil, dinâmico – feito sob medida para a agitação destes nossos dias da era digital –, que dá para se ler numa única sentada. Remeti-me ao estilo de Clarice Lispector, Lígia Fagundes Telles; pra mim, dois gênios da literatura brasileira contemporânea; Literatura, melhor, em caixa-alta. O autor é instigante, vai provocando o leitor ao longo do texto por meio de índices de que algo inusitado vai acontecer ao final do conto: “Dona Nenê se recusou desde o início a chamar o gato pelo nome dado pelo Ataliba. Como se dissesse que bicho deve ser só bicho. Como se previsse”. Neste conto, o autor se revela poeta (porque “se uma criança é boba e não pensa, nem assim deixa de ser triste”); generoso, brinda os leitores com outra revelação. A de que a Literatura não se dá para responder a perguntas, mas para criá-las. A Literatura não trata da província do decifrar, do esclarecer, do explicar, mas da do se confundir e… Admirar! Deu curiosidade de se ler “O homem infeliz” e comprovar se o autor é tão bom romancista como é contista.
Maurício Mellone
outubro 3, 2011 @ 12:44
Giacomo:
Que ótimo seu comentário! O Mario luta para publicar
o segundo romance e só recebe nãos das editoras.
Um absurdo total e insensibilidade delas!
O Homem infeliz tb é muito bom: vou te encaminhar o e-mail dele
para vcs trocarem informações, talvez ele tenha exemplares com ele
(não sei se vc irá achar em livrarias)
Um abraço e muito obrigado por seu comentário tão profundo e análico sobre
a Literatura do Mario.
até e volte sempre!