De Maurício Mellone em fevereiro 2, 2025
Esta capa formada por pilhas de tijolos, com um trabalhador preto escondido atrás de um tanto de tijolos, é a síntese de Escalavra, segundo romance do escritor, poeta, dramaturgo e agitador cultural pernambucano Marcelino Freire.
Com uma linguagem que funde prosa e poesia, o escritor, radicado em São Paulo desde a década de 1990, relata, num misto de realidade, ficção, história e memória, a relação silenciosa entre um pai preto, pedreiro no sertão nordestino, com seu filho: ambos carregam a dor, o mistério e a culpa pela morte acidental da esposa e mãe. Num jogo criativo com as palavras e uma narrativa não linear, o autor vai criando um grande quebra cabeça, que o leitor é incitado a montar. A própria história de vida do escritor — o silêncio entre Marcelino e seu pai é o mesmo vivido pelos personagens — se enlaça à trama central.
Conhecido por ter criado a Balada Literária em 2006, evento inspirado na Flip de Paraty e que reúne autores de todos os gêneros sexuais e literários para conversar com o público, Marcelino Freire, prestes a completar 58 anos, nasceu em Sertânia/PE, cursou letras na Universidade Católica de Pernambuco e desde 1991 vive em São Paulo. Autor de quatro livros de contos (incluindo o premiado Contos Negreiros/Record 2005) e o romance Nossos Ossos (Prêmio Machado de Assis/2014), Escalavra é um lançamento da Amarcord, selo da Editora Record.
Em 150 páginas, o romance é dividido em duas partes (Primeiro Capitulo e Último Capítulo) e a história é narrada por fragmentos, por palavras/tijolos, num ir e vir no tempo que obriga o leitor a estar atento para criar em seu imaginário a obra proposta pelo escritor. A mescla de poesia e prosa envolve, enreda e, aos poucos, cada fase da vida daquela família que vive no sertão nordestino vem à tona. O autor inicia o livro com definições de dicionário, como escalavrar (esfolar, polir, lixar, puir), mega/grande e lito/pedra, para em seguida dizer que seu livro é um romance megalítico ou teatro das escavações.
“A missão de levantar uma história _ um livro megalítico que há muito tempo tento arquitetar com palavras, umas sobre as outras _ sob as outras palavras _ suspensas _ blocos grosseiros de rocha _ uma escrita nascida nos cemitérios aéreos da palavra _ a minha prosa _ literatura _ quantas pessoas até hoje morreram para que eu colocasse de pé esta estrutura?”
Na primeira parte do romance, pai e filho trabalham duro na obra, sob o olhar tirano do fiscal de obras. O silêncio é a constante entre eles e o garoto demonstra a mesma gana em saber sobre o que ocorreu com a mãe como em descobrir o que dizem os livros. O embate entre José de Arimateia Coriolano (o pai) e Dagoberto (o filho) chega ao ápice, com o jovem sendo agredido:
“Começaria ali entre eles dois uma terceira grande guerra”
Na segunda parte do livro, a história dá um salto para um período em que Dagoberto nem era nascido. Os atritos entre o casal (José de Arimateia e Vilma) já existia e ela lutava para se alfabetizar. A prosa poética do autor, com a trama narrada de forma não cronológica, perdura e o mosaico vai sendo montado pelo leitor. Dagoberto cresce, sua amiga Ritinha ensina-lhe a ler, a repressão social se intensifica, o professor tem um destino trágico e terras dos sertanejos tornam-se parques eólicos. Mais um salto no tempo e Dagoberto volta com seu marido para revisitar suas origens, com Rita agora prefeita da cidade.
Marcelino Freire, ao contar e estruturar a vida daquele pai e daquele filho, introduz temas polêmicos e atuais à trama, como a urgência com a educação (numa alusão clara ao educador pernambucano Paulo Freire), o livro como elemento crucial para o crescimento das pessoas e seu descontentamento com os parques eólicos, que visam obter energia limpa, mas causam abalos ecológicos à região.
Com uma linguagem ousada e provocativa, o escritor oferece ao leitor que chega ao final de Escalavra um prazer incrível, como o de decifrar um enigma ou descobrir o segredo escondido nas arestas daquelas pilhas de tijolos retratadas na capa. E o próprio autor confessa:
“Eu escrevo pouco _ as palavras que eu trago são três, no máximo _ sertão minha mãe meu pai _ meu vocabulário _ de onde vejo o mundo, de onde me retraio, de onde avisto alguma esperança, de onde caio, de onde me levanto e sigo por um rio invisível _ um amor, um livro, uma civilização fica menos impossível quando mexo com essas três palavras.”
“Muito mais do que frases, orações”
“Um livro uma lata d’água na cabeça”
Por ter morado três anos no Recife, tive algumas inferências ao ler esta obra; enxerguei Paulo Freire, João Cabral e Ariano Suassuna nos relatos de Marcelino Freire. Para fechar a resenha, nada melhor do que ouvir a linda canção A força que nunca seca, do paraibano Chico Cesar, também evocada no romance:
Ficha técnica:
Título: Escalavra
Autor: Marcelino Freire
Editora: Amarcord, 150 pgs
Preço: R$ 54,90
Fotos: divulgação
2 Comentários
Nanete Neves
fevereiro 3, 2025 @ 18:47
Esta resenha vai ajudar muitos leitores a compreender melhor esse livro provocativo do sempre grande Marcelino Freire.
Maurício Mellone
fevereiro 4, 2025 @ 14:38
Nanete:
Que maravilha q vc curtiu a resenha; o livro do Marcelino é provocativo
mesmo e muito criativo.
Obrigado pela visita e pelo incentivo
Beijos, querida