De em março 21, 2011
Impossível sair incólume depois de assistir Luis Antonio – Gabriela. A peça é impactante e a sensação geral da pequena platéia de 80 pessoas é a mesma: todos saem como se tivessem levado um baque na boca do estômago. A própria Cia. Mungunzá de Teatro define o espetáculo — em cartaz no Espaço Cênico Ademar Guerra, do Centro Cultural São Paulo — como um documentário cênico, já que se trata da família do diretor, Nelson Baskerville.
Num relado cru e sem subterfúgio, a peça relata a saga do garoto Luis Antonio, nascido em Santos/SP, em 1953, primogênito de uma família de seis filhos que, com o segundo casamento do pai, ganhou mais três “irmãs”, filhas da madrasta. Em plena ditadura militar brasileira, o garoto que desde pequeno não escondia sua homossexualidade, era espancado pelo pai, com o intuito de que fosse “curado”. Obviamente logo ele ganhou a rua e o pulo para a marginalidade foi sua única saída. Com aplicações de silicone, Luis Antonio foi se travestindo e, já como Gabriela, parte para Bilbao/Espanha, onde chega a ser estrela das boates. Viciada em drogas e vítima de Aids, Gabriela morre em 2006, aos 53 anos.
No entanto, não imagine que esse traço linear da sinopse é o que se vê no palco. Com extrema criatividade, a Cia. Mungunzá relata a vida de Luis Antonio/Gabriela como um jogo de quebra-cabeça: usando de vídeos (inclusive com cenas ao vivo), telas do artista plástico Thiago Hattner e elementos cênicos pendurados em toda a extensão do espaço cênico, a história é contada num vai e vem eletrizante e, ao mesmo tempo, muito envolvente.
A Cia. Mungunzá de Teatro, criada em São Paulo em 2006 por atores recém-formados, contatou o ator e diretor Nelson Baskerville para que juntos desenvolvessem pesquisa de teatro pós-dramático. O sucesso “Por que a criança cozinha na polenta”, de 2008, é fruto dessa parceria. Já com Luis Antonio – Gabriela essa união está mais madura: o argumento da peça é de Nelson e a atriz Verônica Gentilin é a responsável pela intervenção dramatúrgica. Marcos Felipe, que vive o personagem central, é parceiro do diretor na composição do cenário e iluminação, além de dividir a produção executiva com a atriz Sandra Modesto. Os atores aprenderam a tocar instrumentos para a execução da trilha composta por Gustavo Sarzi.
Dessa forma, o público tem a nítida impressão de que a peça é realmente uma produção grupal, graças à união e envolvimento visceral de toda a equipe no projeto. Sem qualquer tipo de apelação ou tom melodramático, a triste, violenta e angustiante saga de Luis Antonio/Gabriela se desenrola diante de uma platéia atônita e emocionada. Ao final, os aplausos são intensos, mas todos ainda estão perturbados com a história e a montagem desconcertante. Tanto que os atores solicitam para que as pessoas deixem registradas suas opiniões sobre o espetáculo, num mural atrás da montagem. Como Nelson não teve nenhum contato com o irmão Luis Antonio depois da expulsão da casa do pai, diz que a peça é uma forma de pedir desculpas a ele. Nelson, você está mais do que desculpado! Seu trabalho é de uma dignidade e sensibilidade extremas! A Cia Mungunzá deverá, no decorrer do ano, ser reconhecida com prêmios em diversas categorias. Luis Antonio – Gabriela é um dos espetáculos mais marcantes e criativos a que assisti ultimamente!
Fotos: Bob Sousa
12 Comentários
AGENOR
dezembro 11, 2012 @ 20:16
já assisti mais de120 peças teatrais, entre infantis e adultas. Confesso que até hoje nunca vi nada mais impactante, real, bonito, verdadeiro, (não adiante, colocar mais elogios, por que todos seriam ineficientes) perante o espetaculo(show) que vi por mais de 6 vezes no Teatro Alfredo Mesquita nesses ultimos dois meses de 2012. Obrigado por ter me proporcionado a oportunidade de ve-los atuando e falando de um tema infelizmente atualissimo.
Ressalva para dizer que a cantora(com vestido dourado durante toda a peça) é uma das mulheres mais lindas que eu já .
Maurício Mellone
dezembro 12, 2012 @ 14:45
Agenor:
Luis Antonio Gabriela é um espetáculo que causa impacto mesmo!
Tanto q além do reconhecimento do público, a peça já foi muito premiada.
Com todos os méritos!
abr e volte sempre me visitar por aqui
Vera Lúcia Jesus Lago
agosto 24, 2011 @ 12:50
Gostaria que a peça voltasse a ser apresentada em Santos. Eu e vários amigos não conseguimos ingressos.
Temos vários amigos que conheceram a Bolota e que gostaria de ver a peça.
Fico no aguardo de uma resposta.
Maurício Mellone
agosto 24, 2011 @ 17:09
Vera:
Por que vc não tenta entrar em contato com o Nelson Baskerville; ele tem página no Face Boock.
Envie uma mensagem a ele.
Não tenho contato com a produção, fiz somente a resenha da peça, q é linda e emocionante!
Boa sorte
abr e volte sempre me visitar!
Zedu Lima
abril 4, 2011 @ 12:11
Maurício,
Foi com uma grande decepção que sai do espetáculo. Já estava com muita vontade de ver esse trabalho. Quando li sua resenha, aumentou mais ainda minha ansiedade. Ao ler o depoimento do Nelson Baskerville no programa, pensei: “vou ver uma peça arrebatadora’. Ao entrar na sala de apresentação e deparar com aqueles inúmeros sacos plásticos de soro, pendurados do teto, que remetem à aids que matou o personagem retratado ou documentado, comecei a ficar preocupado. Afinal, a aids não é o mote da peça nem do personagem para ficar assim tão reforçada na cenografia. Quando começou o espetáculo com toda aquela poluição sonora e visual, numa profusão de aparelhos eletrônicos, com os atores mais precupados em acioná-los, minha preocupação aumentou. Não sou contrário ao uso de outros artifícios tecnológicos em teatro, desde que seja absolutamente necessário para complementar o que o texto ou a montagem não conseguem mostrar, o que não é o caso; ou para acrescentar outras informações. Por exemplo, na cena em que o pai fala “Eu bato” (no filho por ser ‘viado’) e o filho replica: “Eu apanho”, poderia aparecer numa tela o vídeo com a cena em que aquele grupo homofóbico agride um rapaz na Av. Paulista, ressaltando que nada mudou dos anos 60, quando o pai bate, até os dias de hoje. Antes, a repressão e violência aconteciam em casa, hoje se sucedem nas ruas.
O que me incomodou demais é que o texto é brilhante, arrebatador e que fala por si só, não precisando de tanta parafernália, de tanta explicitude, que só provocam um distanciamente desnecessário. Além de parecer não acreditar na capacidade do expectador de imaginar a cena apenas pelo seu texto. Por exemplo: quando a personagem Gabriela vem com um macacão rendado, cheio de bolsos preenchidos com volumes, eu estranhei, até perceber que era uma forma explícita de mostrar a deformidade física que o silicone provocou. Mas isso fica tão mais evidente e contudente quando a irmã dele relata que, ao ajudá-lo num no banho, ficou assustada ao observar “uma mulher com pênis” e se chocar com os caroços pelo corpo provacados pelo silicone, deixando suas pernas como as de um elefante.
É uma pena, pois o elenco é excelente, um grupo esforçado e muito bem intencionado que, a meu ver, não acreditaram muito no poder do texto que tinham para trabalhar. Não precisavam terminar o espetáculo com aquele clichê (de muito mal gosto, por sinal) do personagem transfigurado em São Sebastião.
Zedu
Maurício Mellone
abril 4, 2011 @ 12:22
Zedu,
Com propriedade vc faz críticas ao espetáculo, mas concorda que o texto “é brilhante” e o elenco “é excelente”.
Suas considerações se referem à montagem e às escolhas da direção; talvez tenha sido intencional o uso da
parafernália tecnológica com o objetivo de não deixar o espetáculo tão comovente e provocar um certo distanciamento.
Sua sugestão de cenas da violência ocorrida na Av.Paulista recentemente é uma sacada maravilhosa. Bem podia estar
nos vídeos da peça.
Fiquei muito empacatado com a montagem e creio que “Luis Antonio-Gabriela” é um dos grandes destaques da temporada
teatral paulista desse ano.
bjs
Willian
agosto 22, 2016 @ 19:41
Distanciamento! É sem dúvida a proposta. O texto realmente teria este poder numa tentativa realista. O diretor acabou utilizando uma linguagem um pouco mais atual, que tira o poder de rei do texto e a ele delega a função de um dos componentes da encenação. Não fica em segundo plano, mas também não é o mais importante, sendo mais um, entre tantos que compõe a obra como um todo.
Maurício Mellone
agosto 22, 2016 @ 19:50
Willian,
como esta sensível peça encenada há anos
ainda comove as pessoas.
Obrigado pela visita, volte outras vezes
abrs
Maurício Mellone
março 23, 2011 @ 15:51
Olá Maurício
Adorei a resenha sobre Luís Antonio Gabriela, que ao meu ver, é um primor.
Gostei do que escreveu não só por que é elogiosa, mas principalmente como colocou tudo isso.
Muito bem escrita. Adorei mesmo.
beijos, querido
Célia Forte
Maurício Mellone
março 23, 2011 @ 15:54
Célia:
Muito obrigado pelos elogios!
A peça é tocante e o Nelson, de uma coragem extrema!
Venha sempre me visitar!
bjs
Mario Viana
março 21, 2011 @ 22:24
QUE BOM QUE VC ME ESCUTOU E FOI VER A PEÇA, MAURÍCIO… É REALMENTE IMPRESSIONANTE A MANEIRA COMO NELSON RASGA A ALMA, UM DESPUDOR RARÍSSIMO NO NOSSO TEATRO.
ESPERO QUE A CRÍTICA NÃO TORÇA O NARIZ, COMO TANTAS VEZES ACONTECE.
Maurício Mellone
março 22, 2011 @ 14:48
Mário:
Já comentamos pessoalmente, mas quero novamente agradecer a sua indicação!
Tomara q vc esteja errado e a crítica não seja tão arrogante! Na resenha até faço uma
previsão, a de que a Cia Mungunzá vai faturar muitos prêmios.
Pelo trabalho e a ousadia do Nelson, espero q eu esteja certo. Eles merecem!
bjs