De Maurício Mellone em março 29, 2018
Abusando da oralidade, com gírias e termos usados pela galera dos morros e periferias do Rio de Janeiro, o livro de estreia de Geovani Martins, O Sol na Cabeça, traz 13 contos que remontam o universo da infância e adolescência de moradores das favelas cariocas. Aos 26 anos, Geovani nasceu em Bangu, morou na Rocinha e hoje vive no Vidigal.
Em recente bate papo em São Paulo, o autor confessou que desde pequeno sempre adorou ler (lia tudo o que a mãe lhe dava e logo se apaixonou por Machado de Assis) e participou da Festa Literária das Periferias (Flup), onde foi revelado. Depois participou em Paraty da Flip e já comercializou os direitos de publicação deste livro para nove países, dentre eles Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Portugal e China.
“Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo.”
Assim começa o primeiro conto do livro, Rolézim, — premiado na Flup —, que relata em primeira pessoa a ida à praia de um grupo de amigos adolescentes num período que o cerco policial contra os arrastões estava intenso. A oralidade do texto impressiona, parece que o leitor está ouvindo o garoto contando seu passeio: ele descreve tudo o que acontece a seu redor durante o dia, desde a reunião dos amigos para irem à praia, a dificuldade de encontrar uma seda pra poderem acender o baseado, o clima de tensão devido à ação policial, até a alegria de mergulhar no mar (“saí voado pra água, mandando vários mergulho neurótico”) e depois o desfecho tenso da história.
Com desenvoltura, Geovani altera o olhar do narrador em seus contos. Mesmo retratando a infância e adolescência de garotos das favelas, o autor escreve na primeira, mas também na terceira pessoa, mantendo sempre a visão curiosa e crítica da situação (“Seu Matias nasceu cego. Nunca viu o mar, armas ou mulheres de biquíni. Mesmo assim, vive sua vida, anda por todos os lados…). Os temas também são variados, relata casos de preconceito racial e de violência, tanto da polícia (em Rolézim e Sextou) como dos traficantes (em Travessia e Estação Padre Miguel; neste conto, além do susto dos garotos com os dois traficantes de moto, há uma curiosidade, com o narrador no final dizendo que “um dia ainda escrevo essa história”).
A delicadeza também está presente na obra de Geovani, como em O caso da borboleta, em que a imaginação de Breno, um garoto de 9 anos, corre solta, ou ainda em Primeiro dia, sobre a mudança de escola de André. No conto O Mistério da vela a relação dos amigos Ruan, Thaís e Matheus com dona Iara, a macumbeira, é emocionante. Ressalto ainda mais dois contos; em A viagem, o jovem Rafa relata com detalhes o Révellion que passou em Arraial do Cabo com a namorada Nana e os amigos Gabriel e Juan: além da descontração e alegria pelo passeio, o autor descreve o clima tenso quando eles são atacados na praia por “dois caras louros e fortes com pinta de playboy rato de academia”. Um olhar diferenciado para a violência urbana: não são os favelados que atacam, mas eles são vítimas dos louros e fortes! Em A história do Piriquito e do Macaco o relato é do jovem que assiste a mudança ocorrida na Rocinha com a implantação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). O narrador fala dos dois lados da invasão, tanto da polícia como do ‘vagabundo’, mas em uma frase a crítica é nítida: “Esses polícia é mó piada mermo, falando assim até parece que não é eles que vende a porra das arma nos morro”.
O escritor Antonio Prata conheceu Geovani Martins na Flip, em Paraty, e o apresentou aos editores da Companhia das Letras; no bate papo com o autor em São Paulo, ele demonstrou sua admiração pelo novo colega e, na orelha do livro, é enfático:
“Na literatura brasileira contemporânea, que tantas vezes negligencia a trama em favor de supostas experimentações formais, O Sol na Cabeça surge como uma mais que bem-vinda novidade”, conclui Antonio Prata.
Ficha técnica:
Título: O Sol na Cabeça
Autor: Geovani Martins
Editora: Companhia das Letras, 120 pgs
Preço: R$ 34,90
Fotos: divulgação
2 Comentários
Lilia Guerea
outubro 11, 2018 @ 19:32
É mesmo um alento ler a explosão dos registros arquivados na cabeça do Geovani ao longo desses 26 anos. As crianças, os jovens das favelas, das periferias, por vezes passam incólumes, transparentes… Como se estivessem alheios. Não é verdade. Enquanto observam, acumulam vivências de uma rotina que só quem experimenta pode relatar. Geovani, ainda bem, compartilhou seus achados, suas conclusões, seus não julgamentos. Muito agradecida, Geovani. Muito!
Maurício Mellone
outubro 12, 2018 @ 14:48
Lilia,
que bom q vc tb gostou do livro do Geovani, que
tem muitas afinidades com o seu livro de contos.
Ambos, vc e ele, retratam com muita verdade a realidade e o
universo das comunidades da favelas, ele do Rio e vc de Sampa.
Parabéns a ambos e não vejo a hora que os próximos livros de vcs
cheguem logo ao mercado!
Obrigado pela visita e volte sempre, terei o maior prazer
em tê-la como minha leitora (eu já sou um leitor/fã da sua obra)
bjs