De em maio 15, 2010
Jura Cy
Cem
O olhar e as impressões de um neto para os cem anos de sua avó
Juracy Albuquerque Fernandes 15/05/1903
15/05/2003
Início de século, mais precisamente no terceiro ano do século XX, aos quinze dias do mês de maio, chegava ao mundo uma garotinha que faria história. Tanto é verdade que hoje, novamente no terceiro ano do século, mas agora do XXI, aos quinze dias de maio comemoramos seu centésimo aniversário!
Juracy, a quinta filha do casal Albertina e Draco, nem de longe imaginava a sua extensa caminhada pela vida. Mas hoje, ao se olhar para trás, nós — seus filhos, netos, bisnetos, amigos e todos que têm o privilégio de conviver ao seu lado — temos uma única certeza: sua experiência de vida é um verdadeiro exemplo para cada um de nós. É seu legado de amor, princípios e valores que carregamos impressos em nossos corações e mentes.
Nesta crônica não tenho a pretensão de relatar todos os passos de sua trajetória, mas como uma forma de homenagem queria realçar algumas passagens de sua enriquecedora vivência, o século de sua história. Sempre, é claro, do ponto de vista de um neto que a ama demais!
O avanço e o estar além de seu tempo são marcas na vida de Juracy. Desde pequena, com o incentivo e determinação dos pais, estudou e se profissionalizou. Não podemos esquecer que vir de Porto Feliz a São Paulo para estudar naqueles longínquos anos levava mais de oito horas, isto depois de andar de trole, trem e bonde! Hoje esta distância é percorrida em menos de duas horas, é verdade! E outro detalhe importante: no início do século passado poucas eram as mulheres que estudavam e se profissionalizavam.
Hoje, ver a mulher compartilhar e dividir o espaço na sociedade com o homem é extremamente natural. Mas tudo isto é fruto de conquista. E nesta conquista você, Jura, tem uma significativa participação. Educadora, musicista, compositora, enfermeira, cabeleireira, fazendeira, doceira, cozinheira, artista plástica, artesã, dona de casa, pianista. Todas estas atividades e outras tantas você exerceu, sem nunca deixar de ser mãe, vó e bisa em tempo integral!
Participação na vida política do país, opinião e postura como cidadã diante de todas as questões também parecem-nos atitudes corriqueiras da mulher nos dias de hoje. Mas não eram no século de nascimento da Juracy. Porém, ela nunca se esquivou da luta: só como exemplo, enquanto o noivo, o saudoso vovô Paulo, se alistava como soldado da Revolução de 32, Juracy estava no front, como enfermeira cuidando dos feridos!
Nos anos trinta, vieram o casamento e os filhos, Lia e Fábio. Abandonar a profissão para acompanhar o marido pode parecer uma atitude não tão avançada. Mas daí floresce o outro lado desta mulher: a companheira do marido de todas as horas e a mãe dedicada, que também foi a professora das primeiras letras dos filhos.
Nesta época, as viagens e as mudanças de moradia também se tornaram uma constante: desafio que ela enfrentava com galhardia, adquirindo uma técnica toda especial para embalar os utensílios e administrar a vida da família. Deslocada de sua vocação original — a educação —, Juracy passa a trabalhar ao lado do marido, sendo seu braço direito. Posição que nunca mais deixou de exercer.
Vamos a mais um exemplo de doação e humanismo? Se já não bastasse os filhos de sangue que Deus os concedeu, Jura abraça mais dois filhos adotivos. Primeiro, o negrinho Loly e depois seu irmão Fabinho, que foram criados e educados com todo o amor e amparo, sem qualquer diferença dos dois mais velhos.
Meados dos anos cinquenta, outro recomeço para Jura. Volta para Porto Feliz e se instala na chácara, herança que recebeu dos pais. Lá, ao lado de Paulo, começa do zero a formar aquela que foi a mais aconchegante e agradável fazenda dos sonhos de seus netos. Sua dedicação, entrega e amor foram integrais, desde a formação de pomar, hortas, jardim e a criação de animais, até sua contribuição na produção da chácara. Efetivamente era Jura que estava à frente da produção da manteiga, dos queijos, dos doces caseiros que ela mesma manuseava nos tachos, sem se esquecer das frutas, verduras e legumes colhidos ao lado da sede.
Parece, até aqui, que a vida de Juracy foi só de alegrias e felicidades. Claro que não e justamente por isto ela novamente é um exemplo para todos nós. Nos momentos de dificuldade financeira, quedas de safras, incêndios no canavial, por exemplo, vovô Paulo contava mesmo era com o apoio, a palavra de incentivo e a disposição para recomeçar de sua companheira de vida.
Agora não vou mais me referir à garotinha, nem mais à adolescente ou à mulher madura. Chegou a hora de mencionar um lado de Jura que muito me toca particularmente. Aquele lado da abnegação, da doação e do amor por excelência: sua porção avó-mãe! Primeiramente, quando cada um de nós, seus netos, chegava ao mundo, era ela quem se deslocava do interior para se postar ao lado da filha e da nora, Noemy, no apoio incondicional. Depois, já crescidinhos, era no aconchego da chácara dos avós Paulo e Juracy que a gente passava as férias, cercados do amor, da alegria, do carinho e da sabedoria de viver deste casal iluminado. Impossível esquecer-se de brincadeiras mais criativas boladas pelo vovô, como o concurso do silêncio, a colheita do feijão, o esconde-esconde dos ovos de Páscoa que só ele sabia proporcionar, a fogueira de são João e a farra do bater de panelas e sinos para anunciar o ano-novo, que com sua ansiedade característica e peculiar, sempre chegava mais cedo para todos nós, as crianças!
Mas e Jura, ficava de fora nestas horas? Que nada, além de cúmplice do vovô em todos estes folguedos, ela também organizava muita distração e atividades que aliavam entretenimento e instrução. Para se fazer aquelas goiabadas deliciosas, todo mundo participava. Com Jura na liderança, era montado um verdadeiro mutirão de moleques, que saíam para apanhar as goiabas no pomar, limpar, lavar, descascar e depois ajudá-la a levar as frutas até o tacho, momento que encerrava nossa participação devido ao perigo do fogo. E na hora de fazer manteiga e queijos? Nossos olhos até brilhavam, pois ela permitia que tomássemos à frente da tarefa, claro que com sua carinhosa supervisão. Assim se repetia no preparo do milho-verde para doces e salgados e tantas outras atividades, que executávamos brincando, mas que no fundo estávamos mesmo era recebendo valiosas lições de vida!
Lições que continuaram a ser dadas, mesmo nas horas mais difíceis de nossas vidas. O desencarne de seu genro Chico e em seguida do marido não a abateram, pelo contrário. Com firmeza, se desfez da chácara e passou a ser o braço direito, o esquerdo e quem sabe até as pernas para a filha viúva, que tinha a missão de educar e dar continuidade à vida para suas seis crianças.
Parece dispensável ressaltar, mas nunca é demais salientar. Para que Lia pudesse voltar a estudar e entrar para o mercado de trabalho, o apoio, a ajuda e a incondicional participação de Juracy foram preponderantes. Enquanto Lia assumia as funções de “homem” da casa, Jura era a mãezona de todas as horas. E isto tudo sem se descuidar do filho, da nora, dos outros netinhos, da irmã Mena, dos filhos e netos adotivos e de quem mais precisasse.
Jura, para acompanhar a filha, volta a morar em São Paulo nos anos oitenta. A fortaleza e o sustentáculo da família só se transferem de local: a qualquer chamado, ela sempre esteve a postos para ajudar a quem quer que fosse. Mas se alguém pensar que seu cotidiano passou a ser passivo e inativo com o passar dos anos e o amadurecimento dos seus entes queridos está redondamente enganado. A pintura, a leitura de jornais e livros, o crochê, a costura, a música, o piano, a cozinha passaram a ser suas atividades diárias. Tanto é que bebês e mamães grávidas recebem sapatinhos de lã de sua lavra até hoje, sem falar da ajuda comunitária ao centro espírita Fabiano de Cristo, que ainda frequenta semanalmente.
Vó Jura, poderia elencar seus feitos, atitudes e comportamentos por mais incontáveis linhas, sem se cansar ou se repetir. Entretanto dou por terminada esta homenagem, pois o essencial veio à tona, acredito. Sabemos também de suas dificuldades momentâneas para se chegar aos 100 anos, mas como não desculpá-la por suas “artes”, travessuras e sua atual aversão à comida? Se você não puder receber as desculpas de todos, quem poderá recebê-las?
Por último, só nos resta mesmo reverenciar seus cem anos vividos com dignidade, amor e entrega totais e, claro, nosso eterno agradecimento por fazermos parte desta sua história de vida.
Que Deus nos abençoe!
2 Comentários
Demétrio Brocca
dezembro 14, 2010 @ 09:51
Dona Juracy é uma pessoa além do tempo. De qualquer tempo. Avó de todos nós, amigos da “Família Fernandes Mellone”, ela sempre nos ofereceu exemplos mansos.Sabe aquela pessoa que ensina com o olhar? Essa era Dona Juracy! Se há qualidades em mim e me permito no plural, muitas vem desses olhares. Parece até que neste momento, estou a olhar para os olhares de Dona Juracy: sóbrios, seguros, atentos, pacificadores!Vida dura mas bem vivida dá nisso. Foi-se a matéria, ficou o legado cultural e intelectual, além da lembrança, estampados em nossas almas, afixados em nossos corações, murais a servir de testemunha dessa incrível existência…Graças a Deus, pude conhecer Dona Juracy!! Obrigado “Família!!!”
Maurício Mellone
dezembro 14, 2010 @ 12:29
Dema, queridíssimo:
que alegria ler sua declaração de amor para minha amada avó!
Não consegui conter as lágrimas! Num dos textos que fiz em homenagem a ela,
dizia sobre o legado q ela havia nos deixado! E é maravilhoso saber que outros
além dos mais próximos tb puderam usufruir da bondade e carisma interior que D. Juracy tanto sabia
transmitir!
Bjs e obrigado pelo carinho!