De Maurício Mellone em dezembro 27, 2022
Livro desabafo. Talvez esta fosse uma boa definição para Carta de amor em tempos sombrios, livro do poeta carioca André Mung, um lançamento de Clube de Autores, vencedor do Prêmio Book Brasil/2021, obra de não ficção.
Como um quebra cabeça, o leitor vai montando as peças para descobrir o teor
da carta. Na realidade, o autor no decorrer do seu desabafo em forma de carta tenta responder a uma pergunta feita pela mãe: por que nunca mais namorou depois do assassinato de Samuel, seu primeiro amor? A resposta é dada de forma truncada, por simbolismos, com o autor fazendo um retrospecto de sua vida, numa verdadeira autoanálise.
O livro é dividido em cinco partes: Introdução, Capítulo 1 Eu, Capítulo 2 Tu, Capítulo 3 Eles e Epílogo. Na Introdução o autor envia uma carta a Cadu, confessando sua dificuldade em responder de forma sincera a pergunta da mãe. Diz que para responder precisa fazer uma retrospectiva, retomando sua vida. A carta é um convite ao destinatário e, por conseguinte, ao leitor para esta volta ao passado.
Como o próprio título diz — Eu —, o Capítulo 1 é dedicado ao autor, com sua infância vivida ao lado de uma família preta, sua mãe biológica o deixa morando com uma amiga. Os relatos incluem desde as primeiras paixões até a eterna dificuldade de se entender neste mundo.
“Eu colocava o ‘pinto’ pra trás, fechava as pernas e admirava a água escorrer por aquele novo corpo que eu criava e que acreditava que deveria ter sido o meu.”
O relato tem uma ordem cronológica, em que ele conta sobre seus primeiros empregos, os bailes funk que frequentava, as relações sexuais nem sempre concedidas, as amizades com as travestis e as tentativas de mudança em seu corpo. As trocas de endereço e de emprego e a difícil relação com a mãe também constam deste relato:
“Raro mesmo era um dia da semana sem briga, nem Natal escapava”.
Na tentativa de relatar sua vida a Cadu, o autor conta sobre seus dramas interiores com a sexualidade, sobre a dificuldade do estigma da “doença dos viados” e o preconceito dentro da comunidade LGBTQI+. No final do capítulo, como sente o estresse de Cadu, resolve revelar a história deles. Assim, no Capítulo 2, Tu, o autor conta como conheceu o destinatário da carta (Cadu, Carlos Eduardo Tavares) e como eles se aproximaram. Trabalhando num bar, ele atendia a todos e o Lindo (Cadu) chamou sua atenção. A aproximação foi aos poucos, com a descoberta de afinidades, gostos musicais e a paixão se configurando. Mas a dificuldade com a sexualidade ainda era um entrave para o entendimento.
“Toda vez que me envolvo emocionalmente com um homem vem o entrave: esse negócio no meio das minhas pernas.
Não me permito viver… A rejeição está em mim, sou eu que crio este círculo de autossabotagem…”
Na sequência, Eles, o autor abre o jogo e, depois de 14 anos sem notícias e com a ascensão da extrema direita nas eleições de 2018, resolve responder a todas as mensagens de WhatsApp enviadas por Cadu. Vai elencando cada mensagem e refuta todos os argumentos fascistas e antidemocráticos usados pelo antigo amado, que reaparece casado e com dois filhos.
“Hoje estou banindo você da minha vida, Carlos.
Não posso amar alguém que apóia aqueles que dizem que somos ‘doentes’ e que nossa existência é ‘anormal’, ‘imoral’.
…A verdade é que acabou minha paciência com criaturas intolerantes, não é hora de manter silêncios como respostas.
Cansei.”
Por fim no Epílogo, o autor conta sobre o telefonema de Cadu e a tentativa dele para que a carta não fosse publicada. Num misto de ironia e revanche, o autor diz que a carta vai ser editada como um livro. E finaliza dizendo que a pandemia fez com que ele finalmente reconhecesse a própria identidade. Mesmo com uma linguagem recheada de mistérios e labirintos, o autor consegue fazer com que o leitor se prende à trama para descobrir o que está por trás do teor das cartas. Outro recurso atraente de André Mung é a utilização de poemas, letras de músicas e trechos de obras de autores conhecidos, que ilustram e complementam os argumentos das cartas.
Ficha técnica:
Título: Carta de amor em tempos sombrios
Autora: André Mung
Editora: Clube dos autores, 152 pgs
Preço: R$ 39,39
Fotos: divulgação
6 Comentários
Val Dias
janeiro 5, 2023 @ 22:13
Maurício,
Sua resenha instiga e desafia o leitor a ir ao encontro dessa obra literária tão necessária. Excelente!!
Maurício Mellone
janeiro 6, 2023 @ 19:00
Val:
fico feliz q tenha gostado da resenha; meu objetivo é este mesmo,
fazer com que o leitor se interesse pela obra literária e vá conferir!
Muito obrigado
Volte mais vezes, vou adorar te receber por aqui
Abraço
Jose Carlos Schemidt
janeiro 5, 2023 @ 14:18
Uma suave e ácida flanada sobre a profundidade dilacerante do encontro com as raízes das nossas próprias sombras para libertar nossa luz e nossas asas no voo das correntes do sopro da vida.
Um brinde a Janus (Divindade bifronte), Deus da transformação e mediador de nossas preces aos demais deuses…
Olhar nossa história para revelar o porvir em toda sua potencialidade, harmonia e inteireza.
Maurício Mellone
janeiro 5, 2023 @ 15:46
José Carlos:
seu comentário sobre a resenha do livro do André Mung é
um poema! Lindo pensamento: “Olhar nossa história para revelar o porvir em toda sua potencialidade, harmonia e inteireza.”
Amém!
Volte outras vezes, terei o maior prazer.
Abraço
André Mung
dezembro 30, 2022 @ 20:52
Mauricio, querido!
Agradeço seu olhar afiado e carinhoso sobre essa carta de amor escrita em tempos sombrios.
O blog é massa!!! aproveitarei pra ler outras resenhas! adoooooro rsrss
Que 2023 seja um Novo Ciclo de Cura e Realizações! bjk
Maurício Mellone
janeiro 2, 2023 @ 12:17
André,
fico feliz que tenha gostado da resenha sobre
seu livro e que tenha tb navegado para conhecer
mais o Favo! Muito obrigado.
Quando vc estiver para lançar seus livros,
avise-me; terei o maior prazer em lê-los e depois
resenhá-los.
Um abraço grande e um 2023 de realizações para nós!