amor@ceu.com

Maurício Mellone

Story line:

Leo envia um e-mail a Gilmar, o namorado, falecido há quatro anos vítima de Aids. Pego de surpresa, já que o amado nunca apresentara qualquer sintoma, Leo tenta na mensagem eletrônica relatar os terríveis 45 dias que antecederam a morte do amado. Ao contar os fatos, ele revê sua trajetória e a mensagem passa a ser para acordar seu eu mais profundo.

amor@ceu.com

Cena 1:

Abre a cortina e no lado direito do palco há somente a luz vinda da tela do computador. Interior de um apartamento. Enquanto Leo escreve, o público acompanha seu desabafo pelo telão.

(texto aparece como um e-mail).

— Há quanto tempo eu precisava falar com vc. Venho ensaiando há meses (quem sabe anos!). Mas chega numa determinada hora que o copo, já cheio, derrama… Estou aqui para te contar como as coisas estão desde a sua, bem vc sabe … Desde que vc foi embora.

Cena 2:

Black-out, corte, acedem-se as luzes e uma permanece sobre o computador. Leo vem da coxia e entra na sala. Ao escolher um cd, foco de luz em seu olhar:

(sempre o personagem fala para a platéia, mas se dirige ao amado)

— Que semana assustadora aquela! Depois de um final de semana normal em que fizemos o que sempre fazíamos — a cerva da sexta, o sábado das compras, do cinema e da balada e o almoço de domingo, cada um com sua mãe —, desaba aquela segunda-feira terrível.

A dor, a tontura, o braço comprometido e vc não conseguindo nem se vestir direito. Em menos de cinco dias vc ensimesmado na cama do hospital, com aquele olhar assustado tentando entender o terremoto que assolou sua vida!

E eu, mais atônito ainda, querendo transmitir força e esperança, mas sem perceber que em meu chão, também, acabara de abrir uma cratera.

Cena 3:

Black-out. Corte: luz brilhante em Leo para marcar outro momento, meados dos anos 80 quando iniciava seu namoro. Ele, ao virar, se alegra com a música: dança sozinho cantarolando à espera do namorado. Sobe música (Vaca Profana com Gal Costa).

…Quero que pinte o amor Bethania…

…São Paulo é o mundo todo…

…Sem mágoas estamos aí…

…sobre os caretas…

Cena 4:

Música cai em BG. Corte: Leo pára de dançar e muda o tom da fala:

— Como éramos felizes.

Eu, saindo de um casamento de 7 anos com o Paulo e vc com receio de encarar uma relação mais segura, um namoro mais sério.

Graças a minha insistência, consegui fazer com que vc entendesse que eu queria mais do que uma simples trepada!

Vc me parecia arisco e arredio, como um gato acuado.

Mas era só uma defesa inicial. Vc ficou apaixonado num estalar de dedos.

(Pausa)

— Como aprendi com vc! Deixei de lado muito das amarras e das disputas do casamento anterior. O amor me transformava novamente. Quanta alegria, entendimento. Conseguimos crescer juntos. E nem percebemos, mas vivemos um ao lado do outro lindos 12 anos! Isto mesmo, 12 anos de vida em comum!

Aqueles olhos verdes, aquele toque…..

(pausa, suspira e engole o choro para continuar. Leo perambula pelo palco ainda emocionado e fala)

— Toque que fui forçado a me esquecer para poder continuar a viver.

— Naquela primeira semana em que vc se internou, me dividi entre a estréia da novela que eu divulgava e o drama de te ver na cama do hospital atônito diante do resultado do exame.

(No centro do palco com foco de luz em seu olhar, muda a entonação de voz,  reproduzindo a expressão do amado, que é um misto de afirmação e interrogação):

“Tô com Aids!?”

(Luz sobre o computador. volta ao seu tom de voz e encara a platéia)

— Foi só o que vc me disse, com aqueles olhos esbugalhados, na tentativa de me informar ou tomar consciência de seu estado.

Consciência que vc perdeu naquele exato momento.

Nos 40 dias subseqüentes, vc esteve alheio a tudo. Ou já se via alheio a tudo o que acontecia: movimentação de médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, o carinho da tia, de sua mãe. Vc não estava mais presente. Não reagia nem mais ao meu toque…

Já em sua casa, vc me olhava e não me enxergava. Não reagia a nada, nem aos exercícios de fisioterapia que eu tentava fazer em vc e muito menos aos meus apelos para que reagisse.

(Leo suspira, as lágrimas não são mais retidas, mas ele diz:)

— Hoje, depois de tanto sofrer, sei que naquela hora vc já tinha feito sua opção: não queria mais viver. Ia travar sua luta em outras dimensões, em outros mundos!

(Cai a luz de forma gradual até se apagar de vez)

Cena 5:

Black-out. Som alto de Vapor Barato/ Flor da Pele com Gal Costa e Zeca Baleiro.  Leo canta junto, enfatizando os versos que o deixam emocionado.

…oh, sim, eu estou tão cansado

mas não pra dizer que eu NÃO acredito mais em você

…oh, sim, eu estou tão cansado

mas não pra dizer que estou indo EMBORA

talvez eu volte um dia

EU VOLTO…

…ando tão à flor da pele

que teu olhar flor na janela ME faz MORRER…

um barco sem porto

sem rumo, sem vela

cavalo sem sela

um bicho solto

um cão sem dono

um menino, um bandido

às vezes me preservo

noutros SUICIDO…

(Som em bg e Leo enxuga as lágrimas e volta-se para a platéia. Luz amena sobre o computador)

— Quantas lágrimas, desespero e vazio.

Culpa? Não sei… Não fui eu que insisti numa chacoalhada na relação. Vc é que propôs que reavaliássemos nosso casamento. Eu topei a parada.

Vc sabia que eu não fugia mais de uma discussão deste tipo. E era uma avaliação como uma via de mão dupla: tanto eu como vc deveríamos repensar nossas vidas.

— Mas vc não quis enfrentar mais uma desilusão: já bastava a falta de horizontes profissionais, com aquela vidinha insossa do funcionalismo e a frustração em não se realizar. Vc nunca admitiu que lhe faltaram forças para terminar o curso de psicologia, que vc tanto amava. E junto disto tudo, a possibilidade do fim do nosso amor foi a gota d’água que vc não suportou e resolveu se retirar.

Cena 6:

Leo muda o tom de voz e desabafa:

— Porra, foi vc que tomou a decisão e esqueceu de me avisar! Fiquei na berlinda, sem saber o quê fazer.

Por que vc não me contou que tinha feito o teste de HIV? Vc optou por não enfrentar a Aids e me deixou de fora desta decisão. Por quê? Não entendo até hoje a razão do seu isolamento!

pausa. personagem suspira e retoma:

— Por que justamente comigo? Não bastava o Paulo, que tinha feito o mesmo três anos antes? Vc tinha que tomar o mesmo rumo que ele, porra? Foi pura sacanagem da sua parte!

— Quanto nós dois juntos tínhamos falado para o Paulo reagir à doença, tomar o coquetel ou mesmo procurar tratamentos alternativos?
Mas quando chegou a sua hora, vc repete os mesmos erros e me abandona!

Vc foi um filho da puta em me deixar aqui sozinho!

E tem mais uma coisa. Engoli calado, mas agora vou desabafar: vc pulou a cerca e me traiu! Do contrário como vc se contaminou? E eu: será que “estou limpo” nesta história? Qual a garantia de que não estou contaminado?… O teste, eu sei; mas cadê coragem pra enfrentar esta dura verdade?

(Mesmo irritado, Leo chora)

Cena 7:

Leo dá as costas para a platéia, caminha a esmo pelo palco e tenta se recompor. Vozes de mulheres, homens se intercalam:

“O tempo é o melhor remédio. Força.”

“Conte sempre comigo e com seus amigos.”

“Não chore, ele sofre vendo suas lágrimas.”

“Ânimo, não desanime. Coragem!”

“Não fuja da verdade. Faça o teste pra saber como agir daqui para frente.”

“Procure uma terapia. Você precisa refazer sua vida.”

“Paciência, Deus sabe o que faz. Se apegue a Ele!”

“Seu desespero só atrapalha. Procure se acalmar”

“Olhe para frente, novos horizontes te esperam.”

“Reaja, só assim ele poderá se libertar deste sofrimento.”

“Dê a volta por cima disto tudo! Não se entregue.”

“Lembre-se: você está vivo. E precisa se fortalecer, até para que ele continue vivo em seu coração, em sua lembrança.”

Cena 8:

Leo senta-se e recomeça seu relato ao amado. (luz fraca sobre o computador):

— Porra, como é difícil ouvir tantas verdades ditas por pessoas que te amam, mas que a gente não quer ouvir e muito menos entender! Acho que há momentos que não estamos preparados para ouvir certas verdades, não estamos preparados para ouvir o próprio coração.

Cena 9:

sobe som. Luz sobre o computador.

— Viúvo: que sensação mais louca! Nas primeiras semanas, muitas providências práticas me exigiram concentração e tomada de decisões. A cabeça precisou funcionar, deixando o coração em segundo plano. Liguei o piloto automático.

O vazio só transpareceu muito depois. Dormir só, naquela cama, que em pouco tempo ficou imensa, era um martírio!

— E como era difícil o contato com a sua mãe, sua tia, suas irmãs e sobrinhos!!! Eram emoções conturbadas: queria ir até a sua casa na ilusão de te encontrar. Mas ao ver sua mãe, dava de cara com a realidade: vc não estava mais entre nós e eu precisava dar uma força a ela. Ficava lá o tempo todo segurando o choro: ver suas fotos no porta-retratos quase punha tudo a perder!

Ao sair de lá, me debulhava em lágrimas na direção do carro! As pessoas nas avenidas de Sampa não deviam entender nada!

Isto aconteceu inúmeras vezes, até o dia em que meu terapeuta me proibiu de ir até lá. A cada visita à sua casa parecia que eu piorava e me entristecia ainda mais. Decidi, então, falar com sua mãe somente pelo telefone: assim sofríamos menos. Porque tenho certeza também que a Dona Yolanda gostava de me ver, mas eu era, e ainda sou, a lembrança viva de vc!

(Leo senta e, à meia luz, vê fotos e bilhetes do amado)

— Com o tempo — um tempo muito interior, não mensurável — o mundo volta a girar. Pelo menos eu achava isto. Que nada! Nem alguns porres, umas boas trepadas, nada!

Ficava sempre um vazio, um oco aqui no peito!

E volta e meia me via chorando ao ler um bilhetinho amoroso que havia recebido de vc ou com uma foto com seu sorriso contagiante. Isto tudo até aquele dia em que vc veio me ver.

Cena 10:

Corte. Black out. No canto oposto a Leo uma luz forte e azulada (gelo seco em profusão), um vulto e o som em off.

Me perdoa? Preciso do seu perdão, Leo.

(Confuso, Leo responde)

— Gilmar? Gilmar! É você? Não acredito! (chora)

Eu só posso ir embora se você me perdoar. Eu já o perdoei!

—    Mas perdoar o quê? Por você ter ficado doente? Por ter me traído?

(Leo vê o namorado balançar a cabeça afirmativamente)

— Mas eu nem quis saber como você se contaminou. Isto não iria trazer você de volta para mim. Estávamos em crise, mas quantas a gente já tinha superado? Aquela podia ser mais uma.

Mas quero o seu perdão!

— Perdão por ter me deixado aqui sozinho?

(De novo Leo  vê o namorado confirmar)

— No começo fiquei muito puto, não aceitava a nossa separação. Agora sei que você quis partir em busca de seu destino. Estamos em planos diferentes hoje, né? Preciso refazer minha vida…

Eu só quero o seu bem. Não suporto vê-lo sofrer tanto assim.

— Eu sei, cada um só deseja o bem para o outro. Tô sofrendo porque sinto saudade, sinto falta do seu carinho. Parece que não sei viver sem você ao meu lado. Mas só em saber que você está bem, isto me alivia.

Não podia partir sem falar com você. Precisávamos desta despedida. Fique em paz!

— Eu também só desejo que seja feliz onde estiver. Vou reconstruir minha vida, mas saiba que te amarei sempre! Gilmar, não vá ainda, tenho tanta coisa para te contar!

(corre para alcançar o amado).

— Gilmar, não, por favor, não vá! Preciso te falar: eu te amo! Se eu não falei isto antes, eu repito: EU TE AMO! EU TE AMO! EU TE AMO!

Luz azulada diminui, vulto desaparece. Leo corre mas não há mais tempo. Recobra a consciência e sorri. Sobe música e cortina desce.

Fim do primeiro ato

Cena 1:

Sobe cortina e luz sobre o computador. No telão pode-se ler um e-mail de Leo a Gilmar:

— Hoje fiquei com muita vontade de falar com vc. Já se passaram alguns meses daquele nosso encontro revelador e mágico! Vc sabe o quanto foi bom pra nós aquele papo, já que não tivemos como nos despedir. Na hora não pude dimensionar a importância, mas hoje vejo como foi fundamental para nossas vidas. Fiquei emocionado, mas muito aliviado em poder “falar” com vc. Semana passada sonhei com vc e hoje fiz este poema depois que vi na mesa do bar um maço de cigarro da marca que vc fumava:

Luz do computador  se apaga, pela última vez.( marcar bem este detalhe)

em off sobe voz de Leo lendo seu poema.

Presença

Num insight rápido na mesa do bar,

O maço de cigarro e o isqueiro me remeteram a você.

A lembrança é diária

O amor, eterno.

Mas às vezes o objeto concreto

Nos conecta

Ao indizível

Ao etéreo

Ao impalpável

E ao sentimento mais fraterno

E intraduzível.

Tenho certeza de sua presença

Não mais sofrida.

Minha crença é que nossas vidas

Por forças alheias à nossa vontade

Tomaram rumos paralelos,

Mas nem por isto com menos intensidade.

Nosso amor vive,

Só nós o traduzimos.

Sobe música. Black-out.

Cena 2:

Corte. som alto, luzes e gelo seco. Leo,  com seu copo de uísque, dança com desenvoltura. numa fração de segundos, tudo ao seu redor paralisa e ele reflete (foco no personagem):

— Tenho certeza que tanto vc como o Paulo iriam adorar o Bailão. É tudo muito divertido, ouve-se todo o tipo de som, todos os ritmos. Uma delícia, ainda mais que a azaração é total. Nunca saí daqui sem dar uns belos beijos. E tem cada cara gostoso! O Paulo, que era tarado por negros, iria se esbaldar: aqui os negões são lindos. Eu hoje admito que ele é que estava com a razão. Olha aquele ali, que tesão!

Som, luzes e clima de boate voltam e Leo, já um pouco bêbado, de longe oferece bebida a um rapaz. Nova paralisação e Leo fala.

— Que noite maravilhosa! Tava precisando deste porre, quero muito espairecer. Chega de pensar no passado, quero viver o agora. Estou vivo e com muito tesão! Tô sendo até paquerado! Como diz o ditado, (dá um soluço, já bem embriagado) para esquecer um grande amor, só com outro grande amor. Então vamos lá. Mas atualmente quero exatamente o oposto dos meus antigos namorados: ao invés de loiros de olhos claros, tô mais interessado em negros de olhos bem escuros!

Leo volta a dançar, já bem grogue. Ele conversa com um rapaz:

— Acho que tô bêbado! Vou embora, mas se você me der o telefone, prometo que, ops, te ligo. Você joga o quê mesmo? Basquete, né? Bom, vou pegar um táxi que tô maus….Beijos, Cazé, a gente se vê!

Cena 3:

Volta o som e em seguida black-out. Corte.

Sala remodelada do apartamento de Leo, que fala ao telefone:

— Cazé, fiquei surpreso com você: o número do telefone era de verdade —

coisa rara quando se cruza com um carinha em boate .

(pausa para ouvir a resposta do outro)

— Não, mas é verdade. Hoje em dia ninguém quer nada com ninguém. É o famoso ficar: uma noite e basta. (pausa)

— Só vou acreditar que você é diferente com o tempo (se ajeita no sofá, acaricia o sexo e continua a falar com o paquera).  E o jantar estava uma delícia, adorei. Mas você falou pouco…

— Sei, sei, é um tímido inveterado! (ri ironicamente)

— Mas então o que me diz daquela mãozinha boba por baixo da mesa me deixando louco de tesão? (pausa)

— Tá bom, eu acredito. Mas você também me excita! Só fiquei grilado com uma coisa: no final, depois de eu contar a minha vida toda, você se calou!

Leo troca o fone de ouvido, ouve as desculpas do paquera, muda o semblante e continua.

— Já que você diz que não ficou grilado com nada, ou a minha história não te assustou, vamos marcar outro lance qualquer dia desses? (pausa)

— Tá, eu ligo. Mas vê se também me liga. Assim que você voltar dos jogos, dê sinal de vida, tá? Não some! Beijos e um bem grande nesta sua boca gostosa!

Cena 4:

Leo desliga o telefone desanimado. Vai até o aparelho de som, escolhe uma música e senta-se.

— Que saco, parece que é sempre assim. Rola um tesão, a gente vai pra cama e a partir daí tudo começa a sair errado. Tem gente que diz que  hoje em dia sexo só depois de muito entendimento, muito namoro.

Irônico:

— Só depois do casamento e do consentimento dos pais!  Verdade! Se você vai pra cama no primeiro dia, pinta o desinteresse e ambos se afastam.

Acho que preciso reaprender tudo de novo. Mesmo depois de dois casamentos, pra voltar a ter alguém eu preciso passar por uma auto-escola de namoro!!!!!

Na boa, parece que não sei mais nada. Preciso reaprender todos os truques: piscar, chavecar, namorar, beijar com tesão, fazer carícias, se insinuar, saber ser desejável… tudo!

Em cada palavra proferida, o personagem gesticula, deixando a cena divertida. Depois, muda o tom  e vai preparar um drink no bar.

— Mas tem uma coisa muito séria neste rolo todo. Este jogador de basquete ficou aterrorizado com a minha história de vida. Eu até entendo a posição dele.

Bebe o drink de uma golada só, sem pensar e já prepara outro.

— Começar um romance com um cara que já enterrou dois namorados! E ambos vítimas de Aids!  É uma barra, eu sei! Mas ao mesmo tempo não posso engatar nada com ninguém sem dizer a verdade. É paranóia das pessoas, eu sei, mas fazer o quê?! Por isto que existe camisinha, porra! Ah!! Eu sei, preciso fazer o teste. Não posso viver nesta dúvida. Mas haja coragem…

Cena 5:

Leo escolhe um cd, serve-se de outro dink e ao dançar tem uma idéia. Sai repentinamente. Som continua, luzes se alteram e há uma passagem de tempo.

Cena 6:

Leo entra cheio de embrulhos: são telas em branco, cavalete, tintas, pincéis e todo material de pintura. Vai direto para um canto do palco e começa a desembrulhar tudo:

— Bem que o terapeuta tinha me dado este toque. Preciso extravasar, pôr para fora todos os meus sentimentos: rancor, saudade, dor, raiva, tristeza, melancolia, amor. E principalmente felicidade por poder ter a chance de refazer minha vida, literalmente do zero!

A pintura pode me ajudar e muito!

Sobe música, abaixa luz e Leo já está em pleno trabalho. Nova passagem de tempo. Vê-se telas já esboçadas a lápis, algumas começadas e umas prontas. Ele está de frente a uma, pintando.

— Que coisa, né. Mesmo a gente tendo se entendido tanto na cama, o negão não conseguiu segurar a onda. Fugiu ou escapou pelos vãos dos dedos das minhas mãos! Como a mais transparente e translúcida porção de água!

Mas desta vez não vou ficar na fossa. Não posso voltar para trás, não quero mais ser o meu próprio inimigo.

Vou sair desta, com confiança e fé.

fala batendo no peito

— E tem mais seu LEO:  tenho o dever de ser feliz. Vou reconstruir minha vida e voltar a amar. E como vou!

Leo sai e sobe música

Cena 7:

Corte. Leo, no quarto de cueca, procura uma roupa para ir a uma festa. Personagem experimenta diversas peças — das mais espalhafatosas às sóbrias, bregas e modelitos fashion — Sempre com comentários e opiniões sobre elas, até a escolha final. Cena em tom engraçado,  descontraído.

Quando de vestido e penteado, discorre:

— Nada melhor para uma noite de sábado do que uma festa bem animada! E ainda mais que o FÊ vai ser o DJ da noite: aquele som eclético, sem falar aquelas músicas tiradas do baú! Uau! Vai ser uma delícia!

Leo vai para a sala: ao passar por um de seus quadros fala:

— Odeio ver quadro torto na parede, parece desleixo com a vida. Ainda mais quando este quadro é meu!

Cena 8:

Em frente ao bar, Leo ouve música enquanto beberica um drink. Toca o telefone:

— Cara, que bom que você ligou. Ia mesmo telefonar para combinarmos de irmos juntos.

— Maravilha. Tô com o maior tesão para ir a esta festa.

— É isto aí, acho que estou preparado para um novo amor. Sexo, se a gente quiser, faz todo o dia, né?

— Pois é, depois da trepada fica um vazio enorme! Mas hoje algo me diz que a noite promete. Sexto sentido quem tem é mulher, né? Mas como toda bicha tem um pouquinho de mulher dentro de si….

dá uma bela gargalhada

— É verdade: acho que hoje saio daquela festa com um belo gato! Duvida?

— Tá bom, posso estar viajando, mas nem fumei ainda….

— Legal eu levo, sim, unzinho já enrolado. Mas você quando chegar não quer subir para a gente fumar aqui?

— Você é quem sabe!  Se você prefere assim, eu levo e a gente fuma lá mesmo. Que horas você passa aqui?

— Ótimo, mas vamos com um carro só? Prefiro, assim não preciso me preocupar com a bebida. Se você quiser ir embora antes, volto de táxi.

— Numa boa, toque o interfone que eu desço. Beijos. Até já.

Leo desliga o telefone, aumenta o som e dançando dÁ os últimos retoques no visual. Toca o interfone:

— Puts, cara, tô atrasado. Me dê um minuto que eu desço.

Enfrente ao espelho Leo dá mais uma olhadinha, mexe no cabelo, arruma a roupa, pinga colírio nos olhos, pega um chiclete, volta a se olhar, mexer no cabelo, arrumar a roupa….

repete os movimentos várias vezes, esquecendo-se da hora. Interfone toca de novo:

— Não, agora vou mesmo. Tô descendo…

Quer mexer no cabelo, arruma a roupa pela enézima vez mesmo estando prontíssimo, mas resolve ir.

Cena 9:

Clima de festa. Personagem dança, pára para beliscar algo, pega uma bebida e volta para a pista:

— Que tesão de festa! E quanta gente bonita. Você está de olho em alguém?

— Ah! Aquele de camiseta verde-escuro? Bem bonito, hein?

— Eu? (disfarça, mas confessa). Não sei se é paranóia minha, mas aquele gato ali não tira o olho de mim.

— Não, aquele lindinho, de cavanhaque e camiseta azul! Acho que vou dançar com ele, o que você acha?

—Tá bom,  acredito… mas vou tentar. Me deseja boa sorte!

Leo dança e se diverte. Depois resolve ir embora:

— Eu sei que é cedo. E cedo de verdade, daqui a pouco amanhece o dia.

O quê? (Esforça-se para ouvir pois o som está alto)

— Ah! Sim, mas não dá, preciso ir, tô cansado Edward. A gente dançou feito loucos! Mas eu te ligo. Prometo que não vou jogar fora seu telefone, mesmo você morando tão longe…

— Como? Sei, tá bom, Parati é perto!!!! Perto pra você, que está acostumado a pegar estrada quase toda a semana. Ligo sim, beijos. Volte a dançar, eu tô acabado. Tchau.

Sobe som. Passagem de tempo.

Cena 10:

Corte. Apartamento de Leo, que chega da rua com compras e flores. Leva as compras para a cozinha e volta com um vaso já com água. Enquanto arruma as flores confessa:

— Que loucura! Conheci o cara não faz nem um mês, mas parece que nos conhecemos há uma vida! Vai parecer que é chavão, mas ao estar com o Edward entro em outra sintonia.

Pára de arrumar as flores e pensa.  Coloca uma música que marcou o encontro deles, volta-se para o vaso e retoma o pensamento:

— Ele disse que é um encontro de almas! E que este encontro vai mudar nossas vidas!

Não sei, mas não acho que ele está errado.

— Há um entendimento tão grande entre nós que às vezes fico assustado. Será que eu estou apaixonado????

Cena 11:

Música sobe, ele ri e acaba de arrumar as flores. Coloca o vaso num local bem visível, pega um livro e se recosta na poltrona. Começa a ler, mas deixa o livro de lado, pois não consegue se concentrar. Personagem coloca música e dança.

— Bom se não for paixão, que nome tem isto? Não paro de pensar no Edward um segundo! Fico louco em saber que hoje a gente vai se ver de novo.

Leo muda o semblante e fica pensativo.

—    O que eu vou fazer? Não posso omitir a minha história de vida, mesmo que isto faça com que ele também se afaste de mim, assim como os outros. Mas preciso ser sincero, até comigo mesmo.

Leo vai à estante e pega o envelope com o resultado do teste de HIV. Abre nervoso e cai sentado na poltrona, aos prantos:

— Obrigado meu Deus! Finalmente tô livre deste pesadelo. L I V R E !!!

Grita, alegre. Recompõe-se:

— Maravilha. Agora tenho mais um motivo para comemorar com o Edward. Hoje vamos cair na gandaia!

Sobe som.

Cena 12:

Corte. Black out. Personagem sentado diante do terapeuta, desabafa:

— Você nem imagina o que me aconteceu! Lembra-se do gatinho que encontrei na festa?

— É aquele de cavanhaque, professor de biologia, de Parati?

— Pois é, ele mesmo, aquele que eu estava hiperinteressado!

— Não, pelo contrário, não fugiu. Ele não só ouviu atentamente todo o relato da minha vida como disse que também tinha algo muito importante para me contar. No começo achei — tive quase certeza — que ele também tinha perdido um namorado, vítima de Aids. Mas pior! Muito pior!

— Não, não é nada disto. Ele diz que está muito ligado em mim, chegou a dizer que está apaixonado!

— Pois é, desta vez a história dele que me perturbou, me derrubou de vez! Na hora em que ele me disse que é SOROPOSITIVO,  isto mesmo,  S O R O P O S I T I V O  fiquei zonzo, engoli meu drink, pedi licença, fui ao banheiro onde chorei a valer! Não podia ser verdade, não estava acontecendo comigo pela terceira vez! Aquela simples confissão, dita de forma serena, leve e equilibrada, me tirou do prumo, rodopiei como um pião, dei um giro de 360º num segundo! Não sei nem como voltei para continuar o papo! Não ouvia mais nada, fiquei bêbado com um único drink!

— O jantar? Que nada, acabou no aperitivo! Ele foi à boate, mas não tive coragem de olhar mais para os olhos dele naquela noite! Era demais para um simples mortal! Todos os fantasmas estão de volta, e com a carga máxima! Não sei o quê fazer?! O tesão que estava sentindo por ele sumiu, desapareceu ou pelo menos se escondeu por trás do emaranhado de emoções que estou sentindo agora! O que eu devo fazer?

— Tá, respeitar o meu limite, não me martirizar!! Legal, posso tentar, mas o conflito está de volta, o medo duplicou, o vírus bateu à minha porta outra vez: como enfrentá-lo?????

— É, vou tentar relaxar. Mas quero uma opinião sua: se eu não agüentar e for preciso tomar antidepressivo, por favor não hesite e me prescreva. Não quero voltar ao fundo do poço: minha caminhada até aqui não pode ter um reverso. Conto com seu bom senso.

Cena 13:

Corte. leo pinta descontraidamente. Toca o telefone:

— Oi, tudo bem? (sorri)

— Tinha quase certeza que era você!

— Também estou com muita saudade. Não liguei porque estou trabalhando muito, tanto na empresa como aqui em casa com meus quadros.

— É a pintura está me ajudando muito nesta fase difícil.

— Não, o que é isto! Você não tem culpa de nada, os grilos são totalmente meus. Pensei que ia te assustar com a minha história de vida, mas eu é que estou aterrorizado!

— Tá certo, não vou me afastar de você, fique tranqüilo. Mas também quero te fazer um pedido: quero ser seu amigo.

— É isto mesmo A M I G O! Não posso te prometer mais do que isto, juro!

— Não, não fala isto! Tô passado: apaixonado por mim? Não, por favor!

— Juro, na terapia só falo deste nosso encontro. Meu terapeuta já me perguntou se eu estou apaixonado. Fico até gélido só em pensar nesta loucura. Não quero viver tudo aquilo de novo! Nunca mais, pelo amor de Deus!

Leo começa a chorar compulsivamente ao telefone, mas se controla:

— Tá, tá já estou melhor. Não se preocupe. Vou ficar bom logo. Vou tomar meu floral…

Leo toma água, respira fundo e volta a falar

— Mas é isto mesmo: o máximo que posso te prometer é uma amizade sincera. Não posso te usar: quando te abraço, sinto o corpo do Gilmar. É lembrança física, você acredita?

— Sei, mas se não houver este distanciamento, fico com a impressão que estou te usando, mexendo com seus sentimentos. Literalmente não estou preparado para um novo amor!

— Tá, mas me ouve, por favor. Escuta bem o que eu tenho para te dizer: não consigo namorar você. Não quero manter uma relação conjugal com você!

— Não, eu não estou bravo, é só o meu jeito de falar. Estou sofrendo, mas

— Claro, a gente pode se ver novamente. Quando você vem a Sampa?

— Legal, no final de semana a gente se vê então. Quem sabe na boate?

— Isto, a gente se encontra lá. É melhor assim. Beijos e boa semana.

Cena 14:

Leo desliga o telefone arrasado. Não sabe como se controlar. Pega um drink, mas não está com vontade de beber. Põe um CD, pega um livro, mas em seguida desiste. Resolve pintar: vai até a tela, arruma tudo, dá umas pinceladas, mas vê que não está com vontade. Desiste. Vai até o sofá e tem uma idéia: enrola um baseado e começa a fumar.

— Com este turbilhão de emoções, só mesmo apelando para um fininho, que me acalma e me deixa relaxado.

Luz se abaixa e Leo dá umas tragadas suaves e vai discorrendo:

— Voltar a falar com o Edward me fez bem. Se os meus fantasmas retornaram —Aids, morte, perdas, sofrimento e dor—, ao ouvi-lo fico tranqüilo e vejo que há outro lado desta história, que até então eu não conhecia. Ou só tinha conhecimento na teoria.

Dá mais uma tragada forte, apaga o baseado e volta a pensar em voz alta

— Se com o Paulo e o Gilmar eu cansei de falar para que reagissem, para que enfrentassem o HIV de peito aberto, não se isolassem e pedissem ajuda a todos, com o Edward isto tudo é realidade. Ele é o meu discurso vivo. Ele reagiu, enfrentou a doença, não se abateu e lançou mão de todos os recursos para VIVER!

Além de ter uma atitude positiva diante da vida, toma toda a medicação necessária e hoje é saudável e tem uma vida normal.

Pausa.

— Esta vitalidade e postura  positiva diante da vida é o que sempre desejei aos meus namorados. O Edward me põe em cheque, me mostra um outro lado de lidar com a Aids, diferente do Paulo e do Gilmar.

— Concordo com ele, mas ainda tudo isto é novo. Aids ainda está associada na minha cabeça a morte, a dor.

(Tom indignado)

— Será que nem vendo o cara lindo e saudável vou me convencer que o HIV não tem toda esta força? Porra, o que vai ser preciso fazer pra que eu encare a vida com outros olhos?

(Leo chora)

Cena 15:

Corte. Música em bg. Leo chega em casa, joga sua bolsa no sofá e corre para  pintar. Passados uns minutos, deixa o pincel e as tintas e vai ouvir os recados da secretária eletrônica. Enquanto ouve os recados, anda pela sala:

— “Filho, tudo bem? Queria muito falar com você. Sei que hoje é um dia difícil para você, nestas datas é impossível não pensar. As recordações nos pegam e não tem jeito, né? Como já passei por isto, bem sei como você deve estar sofrendo. Se precisar de um ombro amigo, não hesite e ligue para sua velha mãe. Um beijo”

som caraterístico de secretária eletrônica, com um recado atrás do outro

— “Leo? Como você não apareceu na terapia, não me deu retorno, a caixa postal do celular está lotada, resolvi deixar um alô aí procê. Cara, vê se não se martiriza mais ainda. Hoje faz cinco anos de morte do Gilmar, mas agora você está em outra. Juntos já passamos poucas e boas, não será mais uma data que vai te derrubar! Me liga: você sabe que pode contar comigo, a qualquer hora! Beijos.”

— “Meu guri, onde você se meteu? Não consigo falar com você, desde ontem que estou tentando! Mais uma vez quero dizer que TE AMO e não quero te perder! Sei que há dias que a gente não consegue segurar e vem à tona tudo de novo, né? Mas amanhã é outro dia, como diria o poeta! Força e te espero aqui em Parati para darmos lindos passeios de escuna! Até”

— “Leo, meu amor, é a Li. Tentei te localizar para ver se você queria me acompanhar até o cemitério. Mas como não consegui contato, fui só. Ao colocar flores para o nosso Gil, chorei muito. Mas antes de sair de lá, tive a certeza que ele está bem, muito melhor do que nós. Cheguei em casa, vi um retrato de nós três juntos e me alegrei. Precisamos voltar a ter a mesma felicidade que tínhamos naquela foto. Ele já está bem: falta a gente se reerguer e refazer nossas vidas. Um beijo carinhoso.”

— “E aí, sou eu de novo….bom você deve ter ido a Marte e esquecido o celular por aqui, né? Mas não tem importância. Quando você voltar desta sua ‘viagem’, me liga. Ah, um último avizinho: continuo te amando da mesma forma. Ou melhor: muito mais ainda! Você é íntegro, honesto consigo mesmo e com todos que o rodeiam, por isto que sobe a cada dia no meu conceito. Um beijo de língua.”

Depois de ouvir todos os recados, Leo está emocionado e volta feliz para seu quadro.

Cena 16:

corte. Leo está se arrumando para sair. Pega o jornal para conferir o horário da sessão de cinema, quando toca o interfone:

— Boa noite seu Antônio. Mas do que se trata?

— Entrega, uma hora destas? Mas eu não pedi nada!

— O senhor tem certeza que é pra mim? Tá, pode deixar o mensageiro subir.

Leo, contrariado, abre a porta ao ouvir a campainha. Recebe uma caixa de presente e despacha o mensageiro. Abre a caixa, que solta umas flores (caixa de mágica). Ele pega uma fita de vídeo (ou DVD) e coloca para assistir.

[Desce uma tela. Luz se apaga e personagem fica atrás assistindo.]

Na tela, trupe de palhaços, malabaristas e dançarinos fazem performances ao som de música de circo. Ao final, Edward vem ao primeiro plano, tira a máscara e fala com Leo:

— “Assustado, amigo? Quis te dar este presente com o objetivo de te alegrar. Mas também pra chegar mais perto de seu coração. Não posso imaginar vê-lo triste. Chega, Leo, você já passou por experiências muito difíceis, foi para o fundo do poço, se recuperou e não é porque me conheceu que vai retroceder. Nada disto: bola pra frente. Ou melhor: vamos juntos tocar esta bola. Que tal? Você já me conhece o bastante e sabe que só quero o seu bem. Mas preciso e devo te dar uns toques. Se dê uma chance, não tente ficar surdo para o que diz o seu coração. Tenho paciência, sou persistente. Mas toda a vez que você falava que não queria namorar, ficava ‘gélido’ em ouvir que eu estava apaixonado por você, quase que eu enlouquecia. Sabe por quê? Por que sua boca dizia aquelas coisas e seus olhos diziam exatamente o contrário! Brilhavam de emoção, o que me deixava sem ação!

Entendo como eu possa representar uma ameaça para você, mas não me coloco na condição de perigo. Não sou e nem vou ser um fantasma e muito menos uma continuação de sua triste história de vida.

Diante de tantas perdas e dores pelas quais eu também já passei, aprendi que desistir é um verbo inexistente no meu dicionário. A persistência nos meus valores de vida é que me dá força e esperança. Fui obrigado a fazer uma séria opção na vida, e fiz: V I V E R!

Nosso encontro foi marcado pelo HIV, só que não mais como o vírus que mata, faz sangrar, dói e separa as pessoas. Devemos encará-lo como mais uma possibilidade de aprendizado que a vida nos oferece. A amor tudo pode transformar: a magia se transforma em saúde, a dor em alegria. A incerteza se refaz no calor e no aconchego e a vida continua. Você veio para me ensinar a amar e eu para te relembrar que o amor não é sofrer.

Por favor, dê uma chance a você. Deixe vir à tona a pessoa sensível, amorosa e honesta que está presa aí dentro de você!

Fugir ou camuflar seus sentimentos não resolvem nada.

Vejo uma grande possibilidade de aprendermos um com o outro, com a troca a gente pode crescer! Da minha parte estou pronto e aberto para te receber. Basta você se decidir. E decida-se pela V I D A, pelo A M O R! Um beijo.”

sobe tela, luz acende e entra música.

Cena 17:

Novamente toca o interfone: Leo atende:

— De novo, seu Antônio? Tá bom, pode subir.

Ele recebe um envelope, vê que é uma fita cassete e a coloca para ouvir:

—    “Não se assuste. Não é outra surpresa, apenas uma continuação, um PS. Já te disse que

nunca farei qualquer tipo de pressão. Mas às vezes fica impossível…

pausa

— “Eu também preciso dar um rumo em minha vida. Foi maravilhoso te conhecer, mas há um limite para tudo: entendo suas razões mas como eu fico? Já disse que topo enfrentar o mundo a seu lado, mas você precisa ter coragem e se decidir. Quero muito mais do que ser seu amigo e você também quer, só está com medo de admitir. Leo, eu tenho pressa. Te amo, mas não tenho tempo a perder. Com muita dor, digo que não posso te esperar por muito tempo. Se você não der sinal de vida, terei que partir para outra.

pausa

“Vou atrás de minha felicidade, com ou sem você! Até, Edward.”

Cena 18:

Leo emocionado cai no sofá, sem ação. Anda nervoso pela sala. Resolve ligar para o terapeuta:

— Me desculpe, mas preciso desabafar.

— Tá legal, vou tentar me acalmar para contar tudo o que está acontecendo. Tô muito confuso. Vejo que mexi muito com o Edward. Ele realmente me ama.

— Não, não é nem isto. Fico assustado com uma certa impaciência dele, ou melhor, uma pressa diante da vida.

— É, totalmente compreensível, eu sei! Mas isto também me assusta. Mas como encarar uma vida a dois ao lado dele?

— Tá, admito que estou apaixonado, que é possível tentar namorá-lo. Mas quando isto vem à minha mente, fico apavorado! Não quero repetir com o Edward minha história recente de vida, você sabe!

— Sim, é diferente, eu sei. Até outro dia na boate, eu já bêbado, fiz ele jurar que não vai me abandonar, não vai morrer e me deixar outra vez aqui sozinho! Pode?

— Claro que ele jurou! Nos beijamos e a noite acabou maravilhosamente bem. Sei do amor que sinto por ele, do enorme tesão que existe entre nós, mas cadê coragem para ultrapassar as barreiras que eu mesmo criei na minha cabeça!

Pausa grande em que Leo ouve o terapeuta

— Certo! Sim, acho que estou caminhando! Aos trancos e barrancos, vou enfrentando os problemas, saltando obstáculos e desobstruindo o caminho. Como é bom falar com você: não tinha noção desta minha coragem. Mas é isso aí: mesmo sofrendo, nunca desisti de lutar, romper barreiras internas, ultrapassar meus próprios limites.

— Que bom ouvir isto. Fico mais seguro te ouvindo! Ao falar com você, consigo soltar o que insiste em ficar preso aqui dentro do meu coração! Maravilha, semana que vem nos vemos na terapia. Novamente me desculpe pelo adiantado da hora… Tchau.

Cena 19:

Corte. Black-out. leo vem do quarto bem animado. Coloca um som e vai para as telas trabalhar. Sobe música enquanto o personagem pinta.

Leo dá por terminado o quadro.

Música em BG. Leo deixa os pincéis, dá uns passos para trás para melhor apreciar o quadro que terminou de pintar. Dá um largo sorriso e vai ao telefone:

— Alô, meu querido, é você?

— Não é que sua voz me pareceu diferente, talvez um pouco rouca, distante e fria. Tá resfriado ou já não me quer mais?

— Tá, mas então está triste?

— Obrigado, também me animo ao falar com você. Mas tenho uma surpresa.

— Boa, é claro! Não, é, bom isto também. Acabei o quadro, aquele que estava difícil de sair, lembra? Me sinto aliviado: parece que ao terminar esta tela consegui botar  pra fora TODOS os meus fantasmas e medos, que tanto me atormentavam!

— Maravilhoso, né? Também fiquei e estou muito contente. Mas há outra surpresa, você não adivinha?

— Você é um bruxinho mesmo, hein?

— Sei, você realmente consegue ouvir meu coração. Às vezes melhor até do que eu!  Quero saber se ainda está de pé o convite do passeio de escuna?

— Que bom, então este final de semana é só pra mim, tá?

— Pára, não vou adiantar nada, não. Segura esta ansiedade e deixa de ser curioso. Ao contrário de você, eu aviso que farei uma surpresa. Não sou como você, que quase me matou do coração com aquela fita!

— Não, adorei, fiquei emocionado com tudo aquilo que você me disse. Foi fundamental pra me abrir os olhos. Mas precisava me assustar tanto?

— Tá legal, assim que chegar, te ligo.

— Certo, te espero naquele barzinho, nosso velho conhecido! Até!

Cena 20:

Leo desliga o telefone: seu semblante é outro. Está alegre e de bem com a vida. Prepara um drink, coloca um som e começa a pensar alto:

— Acho que não tem mais volta. Agora é enfrentar mais este desafio. Mas pra quem já enfrentou tantos outros….

— Será? Será que ele pode recusar o meu pedido? E não demorei tanto assim pra me decidir! Foi “somente” um ano e pouco…. Mas será que eu vou quebrar a cara? Bom, vou ter de arriscar.

Leo vai até a estante, pega a caixinha com as alianças, dá uma olhada e vai para o quarto acabar de arrumar suas coisas para a viagem. Com carinho, guarda a caixinha e fala:

— Ele tanto que brincou, mas nem imagina que estou indo a Parati para lhe pedir em namoro. Oficialmente!

Leo pára e refaz a frase:

—    Namoro, não! C A S A M E N T O!

Enquanto fala, fecha a mala, leva tudo para a sala. Coloca um disco e resolve escolher a música do CD. Põe

Pra Rua me Levar – Ana Carolina e Totonho Villeroy na voz de Maria Bethania

Como no início do primeiro ato, começa a ouvir e cantarolar os versos que parece feitos para ele:

“… Já sei olhar o rio por onde a vida passa

Sem me precipitar e nem perder a hora

Escuto no silêncio que há em mim e basta

Outro tempo começou pra mim agora

personagem canta, dança solto no palco, enfatizando os versos

… Vou deixar a rua me levar

Ver a cidade se acender

A lua vai banhar esse lugar

E eu vou lembrar você”

Música cai em bg e ele fala:

—    É isso aí: vou me deixar levar pela vida… (Fala pensando na música)

Seja qual for a resposta do Edward, uma coisa é certa. Quero mais é viver e amar! Não posso ficar preso ao passado. A felicidade é construída passo a passo, aqui e agora. O amor supera qualquer obstáculo e estou pronto para enfrentar todos eles!

À vida!

Música sobe, Leo pega a mala feliz, abre  a porta e sai.

sobe som até o final, com luzes se apagando.

F  I  M  !