De Maurício Mellone em junho 16, 2017
Mesmo tendo sido lançada no final de 2016, nunca é demais indicar e ressaltar uma boa obra literária. É o caso do livro Rita Lee- uma autobiografia, da Globo Livros, em que a roqueira paulistana abre seu baú de memórias e solta o verbo. Com uma linguagem direta e muito próxima do leitor, Rita Lee Jones, sem pudores, fala dos principais acontecimentos de sua vida, desde sua infância no casarão da Vila Mariana, em São Paulo, em que convivia num universo feminino — sua mãe Chesa, as irmãs Mary e Virgínia, a madrinha Balú e a irmã adotiva Carú — regido pelo pai Charles, passando por sua adolescência, suas primeiras incursões na música, seu encontro com “ozmano” Arnaldo e Sergio, a passagem com Os Mutantes (ela só fala Mutas), a carreira solo e seu encontro com Roberto de Carvalho, seu parceiro musical e da vida. No entanto, Rita cronologicamente relata não só sua carreira profissional, como se atém aos momentos de sua vida pessoal, não escondendo nada. Assim como conta do cotidiano dos Jones, ela relembra com a mesma naturalidade como foi violentada na infância, fala de sua amizade com os outros artistas, de seu envolvimento barra pesada com as drogas e o álcool, de todos os discos e como fez as canções e seu relacionamento com o marido (Rob como se refere a ele), os filhos e a neta.
O que mais me chama a atenção no livro, além da maneira confessional como Rita conduz a narrativa, é ter acesso a fatos históricos da cultura musical do país por quem foi agente direto do que está sendo contado. Um exemplo bem típico disto é a forma como Rita fala do convite de Gilberto Gil para que os Mutantes participassem com ele do festival:
“Gil entra no estúdio dando de cara com a guitarra, o baixo e as pedaleiras caseiras. Impressionado com o high-tech mutantesco, arrisca a pergunta que mudou a humanidade: ‘Tenho uma outra música inscrita no mesmo festival e tô pensando aqui que vocês poderiam fazer comigo ao vivo, topam? A música se chama Domingo no parque, tô pensando aqui num arranjo chiclete com banana e ver no que dá. Bora nessa?’”
Um recurso usado pela autora também é surpreendente: logo no início, na página 52, ela introduz uma ilustração de um fatasminha, o Phantom, com a fala num balão, como em História em Quadrinhos. Tudo para dizer que ele irá colocar os pingos nos is, já que a “memória dela pode trair”. Phantom também interfere apresentando dados, datas e, principalmente, filtrando a autocrítica da autora, que invariavelmente diminui seus próprios talentos (ela sempre diz que não tem voz, ou que desafina). Isto também é outra característica do livro: Rita em nenhum momento se auto vangloria, pelo contrário, em várias passagens nem dá o devido valor para as próprias conquistas. Mas dados históricos são incontestáveis: Rita Lee e Roberto de Carvalho compuseram hits de imenso sucesso, seus shows lotavam ginásios esportivos por todo o país, as vendagens dos álbuns da dupla sempre foram muito grandes (ganharam discos de outro, platina, diamante).
A relação de amor e carinho de Rita com os familiares, com seus animais de estimação (gatos, cachorros, cobras, tartaruga, jaguatirica) e com os amigos é contagiante, emociona. No entanto, a proximidade dela com Elis Regina fica muito bem descrita no livro. É comovente a forma como ela conta como se tornaram amigas de infância (chegaram a criar o internato em que estudaram, onde eram Maria Elis e Maria Rita).
A roqueira também descreve o passo a passo da carreira. É muito agradável (aos fãs principalmente) saber como as canções foram criadas e como ela avalia cada álbum — ela descreve todas as músicas dos discos, as turnês, os principais shows e diz o que sente de cada trabalho. Aqui percebe-se o rigor de sua autocrítica e como o Phantom ajuda a contar a verdadeira história.
Entretanto, os fracassos pessoais e profissionais não são esquecidos. Rita detalha seus processos depressivos, sua dificuldade em lidar com perdas de familiares e amigos e seu grave envolvimento com drogas e álcool — relata com rigor de detalhes suas internações em ‘hospicinhos’, suas recuperações e recaídas. E confessa seu orgulho:
“Não faço a Madalena arrependida com discursinho antidrogas, não me culpo por ter entrado em muitas, eu me orgulho de ter saído de todas. Não faço a ex-vedete-neo-religiosa, apenas encontrei um barato ainda maior: a mutante virou meditante”.
A decisão de se ‘aposentar dos palcos’ é revelada da mesma forma que os demais fatos de sua vida. Rita no final faz um resumo e confessa:
“A sorte de ter sido quem sou, de estar onde estou, não é nada se comparada ao meu maior gol: sim, acho que fiz um monte de gente feliz.”
Nuca duvide disto. A legião de fãs agradece e confirma esta verdade.
Ficha técnica:
Título: Rita Lee- uma autobiografia
Autor: Rita Lee
Editora: Globo Livros, 295 pgs
Preço: R$ 29,90
Fotos: Guilherme Samora/divulgação
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