De Maurício Mellone em novembro 2, 2013
Acompanhei muito pouco a edição 2013 da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Por isto que pedi ao jornalista e escritor Zedu Lima — autor do livro 40 viagens e um roteiro www.livronamedidacerta.com.br — que nos brindasse com um balanço do que de melhor aconteceu no evento dirigido por Renata de Almeida. Leia a seguir as impressões do meu amigo sobre os filmes que ele assistiu.
Duas ou três coisas que sei dela
Duas ou três coisas que sei dela é o nome do filme que Jean Luc Godard fez em 1967. E como foram poucos os filmes a que assisti nesta 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, resolvi me apropriar do título de sua obra para nomear estes comentários. Para se ter uma ideia, dos cerca de 370 filmes exibidos em 28 salas, entre os dias 18 e 31 de outubro, vi apenas 10.
Talvez por isso, nunca li e pesquisei tanto o catálogo da mostra como desta vez. E, apesar dos detratores – todos os anos eles fazem soar suas trombetas – constatei que a redução no número de filmes foi acertada, com uma variedade muito grande de cinematografias. Houve um período em que reinou o cinema do Oriente Médio, depois o asiático, com ênfase no coreano. Neste ano, salvo engano, o cardápio foi acrescido de outros temperos, como o novo cinema grego, o polonês com diretores mais atuais, o finlandês. A globalização e, principalmente, a falta de grana provocaram as mais diversas parcerias. Um dos exemplos é o filme Círculos, produção da Sérvia, França, Alemanha, Eslovênia e Croácia, ou Esperando o mar, com produtores da Rússia, Bélgica, França, Cazaquistão e Alemanha.
As retrospectivas, por sua vez, não fizeram feio, como a do homenageado Stanley Kubrick (1928/1999), do nosso Eduardo Coutinho e a apresentação dos filmes mais emblemáticos do mestre japonês Yazujiro Ozu (1903/1963). A Mostra Brasil encheu as telas com 32 filmes, de diretores consagrados e iniciantes, de documentários a ficção. Agora, por favor, desligue seu celular e vamos aos filmes.
A gente não sabe onde colocar o desejo
Nem o padre Adam, personagem do filme polonês Em nome de….. Por mais que se esforce, não consegue controlar o desejo que sente pelos jovens problemáticos que reuniu num centro de reabilitação comunitário. A situação complica quando um dos jovens, tímido e contido, se apaixona por ele. O lance vem a público e o padre tem que ser transferido para outra paróquia, como já havia acontecido anteriormente. O filme aborda um assunto polêmico e atual, a pedofilia na igreja católica. A figura do bispo numa cena curta é emblemática.
Infelizmente, a diretora Malgoska Szumowska fez um filme arrastado, em que cenas desnecessárias interrompem o fluxo da narrativa. A paixão do padre Adam é bem velada, muito pouco para os outros rapazes e a comunidade começarem a comentar sobre ele, taxando-o de gay. Outro equívoco é a trilha sonora, que não tem nada a ver com as cenas que ilustra musicalmente.
Woody Allen Turco
Uma típica e agradável comédia romântica americana, carregada com as tintas de Woody Allen e dirigida por um turco. Trata-se de Somente em Nova York, em que um palestino, cidadão americano, é louco por um rabo de saia a tal ponto de se casar com uma israelense, somente para que ela possa obter o green card de que precisa. A relação, a princípio tumultuada como não poderia deixar de ser, vai se ajustando com os dois personagens tendo que reavaliar suas respectivas tradições culturais e familiares, tema constante dos recentes filmes palestinos e israelenses, mas aqui com muito humor. Como disse o diretor Ghazi Albuliwi no debate após a projeção, “é uma maneira de mostrar que o riso pode amenizar a dor”.
Além da montagem semelhante às de Woody Allen, das piadas constantes (não tão cerebrais como a do diretor americano), de o personagem masculino ser o mais problemático da dupla, da explícita homenagem como o pôster do filme Annie Hall (Noivo neurótico, noiva nervosa), filme de 1977 de Allen, na parede do quarto do rapaz palestino, há uma cena recorrente em seus filmes. É quando o casal sai de uma festa e caminha pelas ruas de Nova York, trocando ideias e se conhecendo melhor, assim como já fizeram os personagens de Allen pelas ruas de Nova York, Barcelona, Paris, Londres…
Tragédia grega no templo do euro (ou um vovozinho pra ninguém chamar de seu)
O filme grego Miss Violence começa com a singela festa de aniversário de 11 anos de Angeliki. A família reunida na sala decorada para a ocasião, a música tocando animada no aparelho de som estimula alguns a dançar, na mesa a pouca variedade de bolo e doces denuncia a pior crise econômica por que passa a Grécia. O mais animado de todos é o vovô, inquieto, querendo fotografar a netinha aniversariante com a família e sozinha. Quando todos se distraem, Angeliki vai até a sacada do apartamento e, com um olhar e sorriso enigmáticos, se atira para a morte. Ela leva consigo um segredo nada edificante, que vai se revelando aos poucos e de maneira instigante. Seu vovozinho não é tão fofo como parece. Para manter aquele status de classe média, ele vem prostituindo as mulheres da família. Quando a irmã mais nova de Angeliki completa 11 anos, ele a oferece para um dos seus ricos amigos (e fregueses) numa cena chocante. Mas, como toda tragédia grega, a vingança é executada de maneira cruel.
Por este filme, o diretor Alexandros Avranas foi o vencedor do Leão de Prata e o ator Themis Panou, que faz o avô, recebeu merecidamente a Copa Volpi de melhor ator no Festival de Veneza deste ano.
Huis clos cubano
Huis clos é o nome da peça de Jean Paul Sartre, que no Brasil recebeu o título de Entre quatro paredes. A peça ficou famosa pela frase constatatória: “o inferno são os outros”. Huis clos passou a significar uma situação sufocante em que as pessoas são obrigadas a conviver num ambiente fechado e não têm como sair dele. É exatamente isso que acontece com os jovens cubanos Reinier e Yosvani do filme La partida, do diretor espanhol Antonio Hens. Embora residem na ampla e ensolarada Havana, a miséria social, econômica e moral em que vivem não os deixa longe do mais apertado e promíscuo inferno. Ambos são casados. Yosvani, passional e sonhador, ganha seus trocados cobrando os fregueses devedores do sogro. Reinier, que, como bom jogador de futebol amador tem os pés mais no chão, se prostitui com turistas estrangeiros no Malecón. Expedientes que os jovens cubanos buscam para poder sobreviver. A hipocrisia transparece quando a sogra de Reinier o estimula a manter o romance com um turista espanhol a fim de que ele o leve para a Espanha e, na sequência, a família. No entanto, se enfurece quando descobre que o genro se apaixona por Yosvani, um pobretão como ele. O romance evolui e Yosvani propõe fugirem juntos. “Mas fugir como?”, contesta Reinier. Para isso, Yosvani, obcecado, rouba as economias do sogro, o que o leva a um triste fim.
Eles falam, mas não dizem nada
A mulheres vão amar O que os homens falam. Ainda mais com o apelo do ator fetiche delas, o argentino Ricardo Darin. Mas estou minimizando o filme. É muito mais do que isso. É uma inteligente abordagem sobre a fragilidade masculina diante dos seus problemas íntimos, de suas fraquezas, dúvidas, incertezas, que eles não comentam com seus pares nem com reza brava. Ao passo que as mulheres fazem disso uma terapêutica prática comum.
Dirigido pelo catalão Cesc Gay, o filme se desenvolve em sete historias curtas envolvendo oito homens na faixa dos 40 anos, todos eles com uma confusão emocional que não revelam. Um deles visita a mulher que abandou por outra, querendo reconquistá-la. Ela já está bem envolvida com outra pessoa e quando revela que está grávida, o incontrolável machismo do ex-marido aflora com a pergunta: “De quem?”.
Ao ir a uma festa de um amigo em comum, uma das personagens femininas dá carona para outro amigo, casado com a amiga dela. No trajeto ela conta os problemas que tem com o marido, que o caronista nem tem ideia, apesar de ser amigo dele. Ela, então, pergunta: “O que vocês conversam quando estão juntos?” E ouve a resposta: “A gente não fala sobre vocês, conversamos sobre coisas importantes. E vocês?”. “Não falamos de coisas tão importantes como vocês”, responde ela. “Falamos sobre vocês”. Trata-se de um filme inteligente, bem construído, elenco irrepreensível. Redondo com sua narrativa circular. No final, todos os personagens se encontram na festa de aniversário de um deles.
Oh! Dúvida cruel
Muito mais que o padre Adam do filme Em nome de…, o belo Boaz, do filme Caracóis na chuva (produção Israel-Espanha), não sabe onde colocar seu desejo. Ele mora em Tele Aviv com sua namorada Noa e estuda linguística. Um dia, começa a receber cartas anônimas de um ardoroso admirador. Mexido na sua vaidade e masculinidade, Boaz começa a desconfiar de todos os homens que cruzam seu caminho: será o colega da faculdade? O mecânico que conserta seu carro? O rapaz que nada com ele na academia? O vizinho que pratica corrida à noite no bairro? Será…? Boaz começa a duvidar de sua heterossexualidade (mesmo porque, no passado ele teve um envolvimento homoafetivo com um colega de quartel) e entra em parafuso.
Tudo ia muito bem até aí, mas não sei se movido por um moralismo atávico ou para provar que a cura gay defendida pelo deputado Marco Feliciano é possível, o diretor israelense Yaariv Mozer pisa na bola. A última cena mostra o feliz casal Mozer-Noa com o filho, olhando os caracóis na calçada debaixo de uma forte chuva.
Enterrar os mortos
O italiano Uberto Pasolini assimilou bem o estilo inglês de filmar ao trabalhar na produção de filmes britânicos como Ou tudo ou nada. Seu filme Uma vida comum, produção Itália-Reino Unido, é um típico filme inglês. Sucinto, objetivo, poucos diálogos, um personagem comum. O solitário John May é um empedernido e dedicado funcionário de uma repartição, encarregado de encontrar parentes ou amigos próximos de pessoas que morrem sozinhas, a fim de lhes entregar os espólios e providenciar um funeral digno
Ao ser comunicado que será demitido por contenção de despesas no seu departamento, John pede para ficar mais um tempo até encerrar um caso que já havia iniciado. Trata-se de encontrar a família de um deslocado, boêmio, encrenqueiro, que morreu sozinho em seu apartamento. Obcecado, John encontra a ex-esposa e a filha dele, que concordam em comparecer ao seu enterro. Mas aí, o diretor provoca um inesperado e fatal acidente de trânsito com o dedicado funcionário apenas para mostrar que ele, mais que os mortos que ajudou a enterrar, não tem ninguém que o faça. Situação que funcionaria melhor se fosse insinuada ou sugerida numa sequência mais poética.
E a gente vai atrás
Taí um filme que fui assistir despretensiosamente, apenas para louvar a diva Catherine Deneuve, e me surpreendi. Não há como resistir em ir atrás de sua personagem Cathy, no filme Ela vai, dirigido pela francesa Emmanuelle Bercot. Viúva, 60 anos (dez a menos que a atriz), ao saber que seu amante de longa data finalmente se separou da mulher, mas não para ficar com ela, e sim com uma jovem, Cathy se desmonta. Para desanuviar a tensão, pega o carro para dar uma volta. O que parecia ser um simples passeio toma um rumo inesperado, levando a protagonista a um pequeno road movie sentimental cheio de surpresas, que vai gradativamente alterando suas convicções e desapontamento. A filha, que não se dá com ela, lhe telefona exigindo que fique com o filho porque ela tem que trabalhar. No caminho, Cathy se envolve com um sedutor rapaz. Ao encontrar o neto pré-adolescente, este a trata com muita intolerância que vai se desfazendo durante o caminho e, sem querer, ele a leva a encontrar um novo amor nos braços do sogro da filha.
Catherine Deneuve está ótima, com uma interpretação despojada e sem glamour. O legal do filme é que a diretora evita qualquer resquício do politicamente correto. Depois de fazer amor com Cathy, o sedutor lhe diz que adora uma coroa e que ela, quando jovem, devia ter sido deslumbrante. Quando o neto grita para avó que ela deve estar na idade da pedra por não manejar um joguinho eletrônico, ela o repreende dizendo: “Olha o respeito!”
Mãe postiça
Talvez pelo fato de diretor Anthony Chen, de Cingapura, receber o prêmio Câmera D’Or pelo melhor filme de diretor estreante no Festival de Cannes deste ano, Ilo Ilo era muito aguardado. Mas não satisfez as expectativas. Não que seja um filme ruim – bom roteiro, direção enxuta, interpretações corretas – mas a temática da diferença de classes sociais já foi bastante discutida pelo cinema e essa versão não acrescenta muita coisa.
Um casal de classe média se esforça para manter seu padrão numa Cingapura que está sofrendo as consequências da crise financeira asiática de 1997. Para isso, ambos trabalham. A esposa, grávida do segundo filho, é uma dedicada funcionária de uma empresa. O marido, apesar do emprego fixo, gosta de derivar sonhadoramente para ganhos extras, como apostar na bolsa de valores. Eles têm um filho pré-adolescente indisciplinado e autoritário. Como não consegue mais cuidar da casa, a mulher contrata como empregada doméstica a filipina Tereza, tratada com toda a arrogância por ser um imigrante de classe inferior. Mas é ela que, com atenção mais maternal, carinho, mas sem deixar de impor respeito, consegue “domar” o filho rebelde, criando um vínculo afetivo entre os dois. Quando a situação financeira do casal degringola de vez, Tereza é demitida e quem mais sofre com isso é o menino.
Aprendizado dolorido
Depois de conquistar o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano, o filme Lições de harmonia recebeu o Troféu Bandeira Paulista como melhor filme de ficção pelo júri (categoria Novos Diretores) e Menção Honrosa no Prêmio da Crítica nesta 37ª Mostra. De fato, é uma das grandes ofertas cinematográficas deste ano. Dirigido pelo cazaque Emir Baigazin, numa produção do Cazaquistão, Alemanha e França, o filme mostra como a violência pode ser introjetada numa pessoa em formação. O tímido e introspectivo Aslan, de 13 anos, sofre constante bullying na escola em que estuda. Quem a comanda é Bolat, líder de uma gang que ele extorque para atender a uma rede de corrupção de ex-alunos.
Aslam vai aprendendo que violência se paga com violência, que ele vai arquitetando silenciosamente. Quando é preso, passa a sofrer a violência oficial da polícia, com sessões de tortura. Nessa sequência há um diálogo emblemático entre dois policiais. “E se não forem eles que mataram?”, questiona um deles. “Não pense nisso. Pense apenas que estamos fazendo nosso trabalho”, retruca o outro, com o mesmo argumento que o coronel da SS nazista Adolf Eichman usou em sua defesa no Julgamento de Nuremberg.
O filme tem belíssimos enquadramentos e confirma a tese que exponho na crônica Quando fala o coração dos animais, incluída no livro 40 viagens e um roteiro: a distinção que os cineastas do Oriente Médio conferem aos animais em suas produções, tratando-os como protagonistas.
Antes de colocar o Fim na tela, tenho que reboninar a fita até o começo para comentar sobre o que se trata o filme do Godard, Duas ou três coisas que sei dela. O dela no título é a cidade de Paris dos anos 60, e o filme faz um retrato da sociedade de consumo que convive na capital francesa em meio à pobreza das massas, tendo como pano de fundo os conflitos como a Guerra do Vietnã. Um dos exemplos dessa atmosfera é a personagem da atriz Marina Vlady, uma dona-de-casa que se divide entre cuidar da família e a prostituição, o meio mais fácil que encontra para poder ganhar dinheiro e satisfazer suas necessidades mais frívolas.
Zedu Lima
Fotos: divulgação
2 Comentários
Irma Ribeiro
novembro 13, 2013 @ 10:39
Zedu,
adorei a materia; É sensacional. Agora já sei quais são os bons filmes que quero assistir. Parabens e ao favodomellone tambem. É muito legal.
bjs
Irma
Maurício Mellone
novembro 13, 2013 @ 10:43
Irma,
fico contente q vc tenha gostado das dicas do Zedu sobre
os filmes exibidos na Mostra Internacional de Cinema.
Ele fez um resumo do filmes q mais gostou e pode ajudar muito
aos fãs de cinema a ficarem atentos aos lançamentos futuros.
Obrigado por sua participação e pelos elogios ao blog.
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abr