De Maurício Mellone em março 21, 2012
Mais uma participação especial aqui no Favo: é com alegria que recebo a colaboração do meu amigo, o escritor e jornalista Zedu Lima, que esteve em um debate com o escritor manauara Milton Hatoum sobre o processo de criação literária. Entre as inúmeras considerações, ele afirmou que a “literatura não é a transcrição da realidade”. Acompanhe a seguir o artigo de Zedu que resume o encontro e, ao final da leitura, deixe seu comentário.
Quem é o leitor?
Para o escritor Milton Hatoum (e, com certeza, para a quase totalidade de seus pares), “O leitor é uma abstração, é um mistério na literatura”. Foi com a revelação de que desconhece o perfil de quem lê seus livros que o autor de “Dois Irmãos”, seu maior sucesso no Brasil, começou seu debate sobre “Processo de Criação Literária”, no programa Sempre Um Papo, na noite do último dia 06, no Sesc Vila Mariana.
Ao reiterar que “um autor não escreve pensando no leitor”, Hatoum apenas confirma o que é uma consciência comum entre os artistas, sejam eles literatos ou de outras vertentes, fazendo coro ao artista plástico paulistano Rodrigo Bivar. Em conversa com o jornalista Fabrício Corsaletti, o pintor e desenhista brasiliense radicado em São Paulo ressaltou que “o compromisso de um artista é consigo mesmo, não com as expectativas dos outros” (Serafina, nov/11).
Mas, provavelmente, o escritor manauara teve uma grata surpresa ao dialogar com leitores conhecedores de suas obras e ficar conhecendo um pouco do seu perfil. Tão fiéis que alguns chegaram a citar a página em que determinada situação acontecia num dos romances. Foi o caso de uma leitora pernambucana ao questionar se a cena em que o personagem Omar, de Dois Irmãos, transa com a tia, já existia na criação da obra ou surgiu naquele momento em o autor escrevia aquela situação.
– Mas eles transam? – perguntou surpreso Hatoum, provocando gargalhadas na platéia.
– Pelo menos é isso que dá a entender, respondeu a leitora.
– Eta pernambucana arretada!, reagiu entusiasmado. – Isso que é interessante: as diferentes interpretações que cada leitor dá para nossa obra, de acordo com sua sensibilidade, seus valores, sua cultura.
Lembrei, então, de outro grande da literatura. O peruano Mario Vargas Lhosa, que no seu artigo Em defesa do romance (revista piauí, out/09), ponderou:
“O romance não começa a existir quando nasce, por obra de um indivíduo; só existe realmente quando é adotado pelos outros e passa a fazer parte da vida social, quando se torna, graças à leitura, experiência partilhada”.
Ao responder à pergunta da leitora sobre a criação da cena, Hatoum afirmou que a situação já existia na gênese do romance. Embora sua obra tenha se baseado até então em lembranças de sua infância e juventude em Manaus, fez questão de deixar claro que “a literatura não é a transcrição da realidade. A gente paga um dízimo a ela”. Aproveitando esse gancho, ressaltou que o presente serve mais à História do que à literatura romanesca. Mesmo porque, “os romances não são receitas de bem viver”.
Ao afirmar que odeia Manaus, deixou a plateia momentaneamente perplexa, já que seus quatro romances — Relato de um certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008) — têm a capital amazonense como origem de seus personagens e palco de suas ações. Mas tratou de esclarecer imediatamente: “Não é cidade que eu odeio, mas o que fizeram com ela, descaracterizando sua arquitetura, seu urbanismo de outrora. Aliás, o mesmo que fazem em todas as capitais brasileiras, haja vista São Paulo”.
Para sua surpresa, um leitor conterrâneo estava presente ao evento. Emérito conhecedor de suas obras, fez ver ao autor que elas tiveram o grande mérito de introduzir no Sul e Sudeste o real universo da classe média de Manaus, cujo exotismo sempre ficou em maior evidência.
Com humildade, Hatoum confessou que muitas vezes questionou seu ofício.
“Quando penso num Guimarães Rosa, num Graciliano Ramos, Machado de Assis, fico em dúvida se havia necessidade de mais um escritor”.
Contradizendo o que afirmou em recente entrevista, que escrevia todos os dias, inclusive aos domingos, contou que só escreve “quando baixa o santo”. Depois de seu livro de contos A Cidade Ilhada (2009), deveria lançar um novo romance este ano, o primeiro a ser ambientado fora de Manaus (as histórias se passam nos Estados Unidos, Paris, Barcelona, cidades onde o escritor viveu, e São Paulo, onde vive), mas ao reler o que escreveu, reconheceu que ainda falta muita coisa a acrescentar.
O programa Sempre um papo é desenvolvido pela Associação Cultural Sempre Um Papo, sociedade civil sem fins lucrativos, com o objetivo de criar políticas de incentivo à leitura a fim de formar cidadãos mais críticos. Foi criado em 1986 pelo jornalista Afonso Borges, em Minas Gerais, mas já ultrapassou os limites de Belo Horizonte e chegou a 30 cidades, em oito Estados da Federação, além do Distrito Federal, tendo sido realizado também em Madri, na Espanha.
Zedu Lima
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