De Maurício Mellone em fevereiro 5, 2014
Uma mulher comum, madura, separada do marido há 13 anos e com dois filhos adultos. Por esta pequena descrição, pode-se ter uma noção pouco representativa de Gloria, protagonista do filme do diretor chileno Sebastián Lelio. No entanto, esta personagem interpretada por Paulina García aos poucos cativa o espectador e mostra seu modo independente, livre e desafiador diante da vida.
Com filhos já independentes e sem ter o que fazer à noite depois do trabalho, Gloria frequenta bailes voltados para a terceira idade (ou melhor, para pessoas maduras); lá se diverte dançando e, invariavelmente, conhece homens, que também invariavelmente a decepcionam. Um dia, no entanto, ela encontra Rodolfo (Sergio Hernández) de 65 anos, ex-militar da marinha, recém-divorciado e eles começam a ter uma relação mais próxima. Entretanto as diferenças de comportamento e de visão de mundo interferem no relacionamento deles.
Escrevo esta resenha ainda abalado com a morte brutal do grande cineasta brasileiro Eduardo Coutinho, que sabia como ninguém extrair histórias comoventes e profundas de personagens comuns, do dia-a-dia. E Gloria do filme de Lelio poderia muito bem ter sido personagem de um dos filmes de Coutinho (principalmente de Jogo de Cena ou Canções), já que é uma mulher fora dos padrões de beleza, sem glamour, mas que é dona de uma história pessoal incrível, além de ser determinada e saber enfrentar os desafios da vida com destreza e bom humor.
Ao começar uma relação mais íntima com Rodolfo, Gloria vai se deparando com as limitações e a dependência dele com a ex-mulher e as duas filhas. Ao contrário dela que o apresenta aos filhos e ao ex-marido, Rodolfo nem menciona a existência da namorada para as filhas (nos insistentes telefonemas delas, o pai sempre desconversa e não diz que está com Gloria). A cena em que este comportamento infantiloide de Rodolfo fica evidente é quando ele foge do hotel em que estavam passando o final de semana, deixando Gloria totalmente à mercê! Mesmo abalada, Gloria tem um comportamento surpreendente para este fato desabonador do amante, o que revela seu estado de espírito livre e bem humorado.
Além de mostrar uma mulher com garra para enfrentar os desafios da vida, a trama do diretor coloca a história atual do Chile como pano de fundo (um país que luta para se reconstruir, inclusive com manifestações estudantis reivindicando melhores condições de vida).
A trilha sonora de Gloria é outro ponto forte da produção: as cenas da personagem se deslocando por Santiago e acompanhando as músicas tocadas no rádio são maravilhosas (as letras das canções conversam com o enredo). Há ainda para nós brasileiros dois momentos tocantes: numa reunião entre amigos, Águas de Março de Tom Jobim é executada e interpretada por todos! Lança Perfume (de Rita Lee e Roberto Carvalho) também é destaque nos momentos finais.
Por último, gostaria de ressaltar uma questão levantada pelo diretor que merece reflexão mais aprofundada: para estar bem é necessariamente obrigatório viver ao lado de outra pessoa? Gloria não deixa de se apaixonar, mas não abre mão de sua liberdade em função das limitações do parceiro.
E a personagem envolvente só ganha esta dimensão graças à interpretação primorosa de Paulina García. Como aperitivo desta bela história, fique com o trecho inicial da canção e o clipe de Gloria, de Umberto Tozzi, que retrata bem o estado de ser da personagem do filme:
“Gloria falta você no ar
falta para uma mão
que trabalha devagar,
falta para esta boca,
que comida mais não cabe,
e sempre esta história,
que ela a chama Gloria.
Gloria sobre seus flancos
a manhã nasce o sol
entra o ódio e sai o amor
de nome Gloria.”
Fotos: divulgação
12 Comentários
Alexandre
fevereiro 18, 2014 @ 16:26
Lindo filme! Inspirador e instigante. Tem uma crítica sobre ele em
http://www.artigosdecinema.blogspot.com/2014/02/gloria.html
Maurício Mellone
fevereiro 19, 2014 @ 16:33
Alexandre,
Gloria,o filme chileno, é encantador mesmo, com uma
atuação sublime de Paulina García.
Obrigado pela visita e volte sempre!
abrs
Nanete Neves
fevereiro 10, 2014 @ 16:28
Maurício,
Tua critica sobre “Gloria” me comoveu tanto quanto o filme. Que grande atriz é essa Paulina Garcia, de registro delicado, sutil. Sempre bom vir aqui e “refletir” junto com você. Parabéns!
Ah, essa Gloria poderia ser personagem daquele filme “Chega de saudade”, em que a Lais Bodanzky fala de personagens dos bailes da terceira idade.
Maurício Mellone
fevereiro 10, 2014 @ 17:02
Nanete:
Com certeza a Gloria iria adorar dançar nos bailes do ‘Chega de Saudade’!
E vc tem razão, a Paulina é uma atriz excepcional!
Muito obrigado pela constante participação aqui
bjs saudosos
Imad
fevereiro 8, 2014 @ 13:55
Adorei o filme, Mau! Foi bom ver uma mulher madura e independente, disposta a reviver o amor, e mostrada nua em algumas cenas, sem que as pessoas se sintam chocadas. Paulina Garcia, por esse papel, foi justamente premiada em Berlim.
Maurício Mellone
fevereiro 10, 2014 @ 14:12
Imad:
O filme mostra tanto a Gloria como o Rodolfo nus em cena de sexo (ele recém operado do estômago),
como não poderia ser diferente. O amor na maturidade vivido sem hipocrisia!
E a Paulina realmente é fabulosa, merecedora do prêmio em Berlim e em outras
premiações, se for indicada!
Obrigado por sua participação aqui no Favo
bjs
Beltrina Côrte
fevereiro 6, 2014 @ 00:09
Oi Maurício, boa dica de filme! Gostei do teu texto mas pergunto: será que a questão de gênero tem alguma influência no filme para que Glória viva a sua maturidade com liberdade e feliz? Sabe, como estudiosa do envelhecimento me deparei várias vezes com a frase: “sou viúva graças a deus” ou “depois que ele morreu eu renasci, pois tenho liberdade de fazer o que eu quero, de viver a minha vida finalmente”. O que faz, no caso do filme, o homem ser tão preso às regras sociais, será a educação militar? Interessante explorar como cada vive a sua velhice.
Aproveito este post para solicitar a reprodução da tua resenha, com as devidas referências, no Portal do Envelhecimento.
Um grande abraço
Maurício Mellone
fevereiro 6, 2014 @ 09:48
Beltrina,
Fico muito feliz de poder contar aqui no Favo com sua colaboração. A Conceição já havia me dito
que enviaria o link para vc e para OLHE. Vou adorar que a resenha seja replicada no portal,
muito me honra!
Sobre o filme e seu questionamento sobre a condição de gênero lembro que a personagem é separada/divorciada
há 13 anos (já tinha sua liberdade antes de conhecer o Rodolfo, o ex-militar).
O namorado é que se mostra um cara extremamente dependente da condição de marido e provedor
(separou-se, será?, e ainda mantém o mesmo vínculo com as filhas e a ex-esposa).
Gloria não está fechada ao amor, pelo contrário, faz de tudo para iniciar nova relação com Rodolfo.
Mas em seu estágio de evolução e conquistas interiores, não suporta viver com um homem inseguro, covarde (não a assume diante das filhas)
e dependente.
Um abraço e meu muito obrigado pela chance de poder participar do portal OLHE
Wander Sanches
fevereiro 5, 2014 @ 19:15
Na mosca! O filme é de uma delicadeza rara e não existiria sem o desempenho de uma grande atriz. Não à-toa, Paulina García levou pelo papel o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim.
Maurício Mellone
fevereiro 6, 2014 @ 09:51
Wander,
sem dúvida um filme delicado e que provoca boas reflexões.
Minha resenha vai ser replicada num portal voltado às pessoas maduras
(OLHE – Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento), estou muito contente!
abr e muito obrigado por sua participação aqui
silvana mascagna
fevereiro 5, 2014 @ 17:21
Adorei o texto. E agora fiquei louca pra ver o filme;.
Maurício Mellone
fevereiro 6, 2014 @ 09:52
Silvana, querida:
q saudades!
Vc vai adorar este delicado e sensível filme chileno! E vai amar o desempenho da Paulina García,
merecedora do Urso de Prata!
Bjs e obrigado por sua visita e participação!