De Maurício Mellone em agosto 16, 2022
Vencedor do Prêmio Jabuti/2015 na categoria contos, o livro de Conceição Evaristo, Olhos d’água, lançado pela Pallas Editora, ganhou reimpressão no ano passado. A obra é uma antologia, com contos publicados originalmente na série Cadernos Negros, do grupo paulista Quilombhoje, e outras histórias inéditas.
A escritora, nascida em favela da zona sul de Belo Horizonte/MG, hoje é professora e doutora em literatura. Conceição faz questão de dizer que o termo que ela criou, escrevivência, é a síntese de seu processo criativo:
“O meu texto, tanto o literário como o ensaístico, a poesia e a prosa, nasce marcado profundamente pela minha experiência de mulher negra na sociedade brasileira. É uma escrevivência que se dá realmente através desta vida do povo negro, homens, mulheres e crianças”, afirma Conceição Evaristo.
Por ser uma antologia de contos, o livro apresenta uma gama de personagens, a maioria delas de mulheres, já que a própria Conceição diz que sua autoria coloca mulheres negras no centro da cena. O leitor se depara com as experiências de vida dos personagens, como a da menina que quer descobrir a cor dos olhos da mãe, o desfecho triste de Ana Davenga flagrada pela polícia na cama com o amado, a mendiga Duzu-Querença, a agitada e diversa vida amorosa de Luamanda, a tristeza do garoto Di Lixão ou o destino fatal do negro Ardoca.
A autora também diz que algumas histórias do livro trazem dados das culturas africanas transpostas para o Brasil, como em Ayoluwa, a alegria do nosso povo, em que há os significados dos nomes: “Nas culturas tradicionais africanas o nome é escolhido por determinadas circunstâncias, por exemplo, um vento que passa no momento que a criança nasceu, ou uma estação do ano. Isto tudo serve para significar o nome da criança”.
Com histórias curtas e uma linguagem direta que envolvem o leitor, a autora, mesmo retratando na maioria das vezes a violência doméstica e urbana, usa de poesia e ousadia. Em Beijo na face, o amor entre duas mulheres é descrito com delicadeza:
“Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer.”
Um conto se difere dos demais: em A gente combinamos de não morrer, o foco não é de um único personagem, mas diversos narradores comandam a ação. Dorvi, Bica, a mãe de Bica (Esmeraldina), Idago, Neo, todos retratam a realidade dos morros, dos becos, das favelas inundadas de drogas, balas perdidas e morte. Pela fala de Bica, talvez a autora se coloca:
“Eu só faço escrever, desde pequena. Adoro inventar uma escrita. Mas escrever funciona para mim como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde… Gosto de ver palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha.”
Depois da dura realidade revivida nas outras histórias, no último conto, Ayoluwa, a alegria do nosso povo, a escritora termina de forma positiva, com esperança. No mundo tumultuado e violento em que vivemos hoje, o desfecho do conto é um alento, um sopro de entusiasmo:
“E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando solução.”
Ficha técnica:
Título: Olhos d’água
Autor: Conceição Evaristo
Editora: Pallas
Página: 116
Preço: R$ 30
Fotos: divulgação
4 Comentários
Adriana Bifulco
agosto 17, 2022 @ 19:22
Fiquei muito interessada em mais esse livro da Conceição Evaristo, agora que li sua resenha. Apesar das histórias dela, em sua maioria, abordarem situações difíceis, ela escreve com tanta leveza, com palavras sempre tão adequadas, que não tem como não querer ler Olhos D’ Água.
Beijo grande, querido.
Maurício Mellone
agosto 18, 2022 @ 14:10
Adriana, querida:
tenho certeza q vc vai adorar.
São contos curtos, que ‘pegam’ o leitor
imediatamente. Por isto q é tão adequado o
termo trama, o leitor fica enredado na trama,
nas teia de palavras e histórias!
Beijos, obrigado pela presença aqui, constante!
Dinah Sales de Oliveira
agosto 16, 2022 @ 16:31
Maurício,
Bom ler sua resenha.
Sabe que até hoje não li a Conceição Evaristo? Uma falha grande na minha biblioteca, que pretendo corrigir logo mais.
beijos,
Dinah
Maurício Mellone
agosto 16, 2022 @ 16:35
Dinah, querida:
estava como vc no início do ano. Mas estou tentando
preencher esta lacuna. Li o maravilhoso ‘Becos da Memória’
e agora este Olhos d’água. Todos excelentes; no Becos
a linguagem q ela utiliza é envolvente, parece q vc
passa a conhecer aquelas pessoas da favela.
Os contos tb versam sobre a população negra, várias vozes.
Vale a pena, vc vai adorar, como eu!
Beijos, saudosíssimos!