De Maurício Mellone em fevereiro 23, 2022
VHM, como aparece na primeira página do livro, ou Valter Hugo Mãe, autor português nascido em Angola no período que o país africano era colônia lusitana, completou 50 anos em 2021 e desejava há tempos escrever um livro passado no Brasil.
No entanto, As doenças do Brasil, editado pela Biblioteca Azul, selo Globo Livros, não enaltece o país, pelo contrário, expõe as feridas do colonialismo português e espanhol praticado nas Américas. A trama se passa na fictícia Ilha dos Três Mares, na Amazônia, quando um jovem negro, Meio da Noite, que fugia da escravidão, chega à aldeia indígena dos Abaeté, é acolhido e faz amizade com Honra, um rapaz filho de índia e de um estuprador branco. Os dois guerreiros se unem e partem para vingar a violência desferida pelos brancos.
O escritor confessa que seu desejo sempre foi que seu livro retratasse o encontro dos povos vermelhos com os povos negros, numa resistência ao inimigo comum.
Como uma forma de reafirmar o desejo do autor, o livro é prefaciado por Conceição Evaristo, consagrada escritora negra, e a contracapa traz outro texto de apresentação do líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, a quem a obra é dedicada.
Para retratar temas delicados da história brasileira e da humanidade — a colonização e o genocídio provocado pelo europeu no continente americano —, VHM cria de maneira lírica e poética não só uma civilização e um tempo próprio, como toda uma linguagem. Ao contrário do que é relatado pela história oficial, o autor mostra a colonização e a invasão branca do ponto de vista dos povos originários e dos negros.
“Valter Hugo Mãe, se apropriando de um fato histórico, constrói uma história que nos parece mais verdadeira do que aquela que os compêndios científicos nos apresentam”, argumenta Conceição Evaristo.
O leitor a princípio pode sentir um estranhamento, já que se vê diante de nova sintaxe, metáforas em profusão, pontuação própria e nomes de personagens incomuns, como Honra, Pai Todo, Meio da Noite, Boa de Espanto, Altura Verde e Dois Amanhãs. Há ainda termos criados ou neologismos, como entoar/soar, que literalmente significa fazer soar, começar um canto, mas no universo do livro funciona como verbo declarativo:
“E o negro entoou:
sagrado Honra, se entendi o que aconteceu, se por sorte me salvaram, quero que saibas que estou grato. Sou grato.”“Pai Todo insistiu:
Soa.”
No entanto, o estranhamento inicial, logo desaparece graças à narrativa envolvente, poética e política. Segundo Ailton Krenak, o autor “inventa um povo, um tempo e uma linguagem própria que dê conta de fazer ver pelos olhos do outro, e são demonstrações puras de que as diversas maneiras de experimentar o mundo são todas elas formas de resistir”.
Sem dúvida uma obra imprescindível, principalmente neste momento tão árduo em que vivemos. Debruçar-se sobre a história do Brasil sob outra ótica, inclusive para entendermos melhor a sociedade em que vivemos, é o que As doenças do Brasil também nos proporciona.
E Conceição Evaristo é definitiva ao encerrar o prefácio:
“Valter Hugo Mãe nos ofereceu uma narrativa de mil e infinitos sentidos, e podemos construir outros. O texto nos convida.”
Experimente construir seu próprio significado desta instigante obra; se puder, deixe-me nos comentários a sua opinião.
Ficha técnica:
Titulo: As doenças do Brasil
Autor: Valter Hugo Mãe
Editora: Globo Livros/Biblioteca Azul, 208 pág
Preço: R$ 54,90
Fotos: divulgação
8 Comentários
Nathalia Petra
janeiro 30, 2023 @ 21:32
Pra quem nunca leu vhm, talvez fique mais difícil de entrar no livro. pra quem já conhece o estilo, esse processo é um pouco mais rápido, apesar de ainda assim complicado.
mas superando as primeiras paginas, o encantamento com a escrita e com a história é imediato. é a obra mais emocionante que já li, e estou quase certa de que o povo abaeté, sua cultura e a ilha de três mares estao lá na amazônia.
Maurício Mellone
janeiro 31, 2023 @ 11:39
Nathalia,
vc tb é fã do vhm!
O estilo dele causa um estranhamento no início, mas depois
a narrativa flui e o leitor se encanta!
Nesta obra isto fica ainda mais nítido.
Hoje constatando o genocídio praticado
pelo governo federal anterior ao povo Ianomami,
entendemos ainda mais a importância e o vigor
de ‘As doenças do Brasil’.
Obrigado por sua participação tão rica, volte outras vezes
abraços
Ademar Amâncio
julho 19, 2022 @ 16:06
Muito bom o texto,não conhecia a obra,entrei em contato vendo ”Roda Viva”.
Maurício Mellone
julho 19, 2022 @ 16:29
Ademar:
o livro do Valter causa impacto; ontem na entrevista
ele confessou que considera seu melhor romance,
pois investiu muito na linguagem. É uma obra que
ele conseguiu se identificar (viu sua identidade na obra).
Mas não é um livro de fácil entendimento, requer muita atenção
e esforço para superar as primeiras páginas. Ao entender
a proposta do autor, o leitor passa a se envolver com o enredo.
obrigado por sua visita
Um abraço
Atílio
maio 17, 2022 @ 20:49
O livro é muito bem feito, do ponto de vista literário, mas é também um evidente fruto das doença pós-moderna da disfuncional releitura de tudo, que para uns é autoflagelação e para outros, sinalização de virtudes sem estofo. Recomendo a leitura e, conforme o caso, um bom psicólogo.
Maurício Mellone
maio 19, 2022 @ 10:11
Atílio,
sem dúvida o VHM é um autor que provoca o leitor a refletir
sobre a realidade. Nesta obra, nós os brasileiros somos
chamados a repensar o lugar onde nascemos e vivemos!
Muito obrigado por seu comentário, volte outras vezes.
Abraço
Adriana Bifulco
fevereiro 23, 2022 @ 09:54
Como sempre, uma resenha maravilhosa! Que trama envolvente e criativa essa de As Doenças do Brasil. Lugares, personagens e o colonialismo sob uma nova ótica. Obrigada pela indicação, querido!!
Maurício Mellone
fevereiro 24, 2022 @ 09:46
Adriana:
obrigado pelo incentivo.
A obra requer muita atenção devido ao estilo
criado pelo autor, mas passado o estranhamento
inicial o leitor se envolve na aventura dos dois
guerreiros, o indígena e o negro.
Vale muito a leitura
Beijos e obrigado por sua presença constate por aqui