De Maurício Mellone em outubro 1, 2014
Com texto criado coletivamente pelo grupo e estruturado pelo dramaturgo e diretor Evill Rebouças, o espetáculo O Desvio do Peixe no Fluxo Contínuo do Aquário, da Cia Artehúmus de Teatro, em cartaz no Espaço Beta do SESC Consolação, propõe discutir as relações afetivas das pessoas nestes tempos de tecnologia sofisticada de comunicação. E por mais paradoxal que possa parecer, vivemos sós, mesmo estando ao lado de outros. A pesquisa de campo realizada pelos atores foi ampla: eles visitaram e entrevistaram desde moradores de condomínios fechados e de luxo, a conjuntos habitacionais e até albergues.
“A solidão retratada na peça não é a da tristeza, mas a da individualidade exagerada, gerada pelas necessidades de comunicação do mundo contemporâneo, em que jantamos com amigos e falamos ao celular ao mesmo tempo. Os personagens da peça falam de suas felicidades, mas estão isolados e sós, em função do ritmo acelerado que vivemos. Mostramos situações universais que revelam aproximações e ausências, ainda que estejamos juntos”, argumenta Evill Rebouças.
A boa receptividade com que os atores recebem os espectadores logo na entrada da sala de espetáculo tem o objetivo de criar um clima de intimidade. E para isso iluminação e espaço físico contribuem: os atores estão no mesmo nível do público e as luzes pouco demarcam a plateia do espaço cênico. O ator Daniel Ortega conduz esta comunicação com os espectadores e pergunta aleatoriamente onde as pessoas moram, se são casados, se têm filhos, quais os bichos de estimação, para em seguida se apresentar. Ele é Téo e mora ali naquele apartamento; é filho de João Paulo (Edu Silva) e Dalva (Solange Moreno) e no centro da sala está um grande aquário, onde vivo o peixinho Tom. Depois apresenta a irmã Anamélia (Natália Guimarães) e seu melhor amigo, Clóvis (Cristiano Sales), o porteiro do condomínio. Quase nas entrelinhas, Téo conta que ‘não está mais ali, ou está’, já morreu, enquanto os pais têm diálogos em que confessam se amarem, mas um não ouve o que o outro fala; a garota, prestes a se casar, vive à espera do noivo boliviano, que conheceu nas redes sociais (ele não possui foto nos perfis). A única relação mais verdadeira e amorosa acontece entre Téo e Clóvis, o que gera atitude preconceituosa da mãe, mesmo que o pai aprove a relação deles. No momento em que o público já assumiu seu papel de espectador, há nova quebra: os espectadores são convidados a tomar um lanche, servido na cozinha do apartamento (nos fundos do ‘palco’). Outra aproximação, com os atores (não os personagens) mostrando em seus celulares e tablets suas fotos pessoais; a descontração inicial é retomada. Terminado este intervalo, a carga dramática se intensifica: os conflitos ficam mais evidentes, como o isolamento vivido entre o casal, o mundo irreal criado por Anamélia, a não aceitação do relacionamento afetivo entre Téo e Clóvis e o desfecho da história. Sendo o peixe o único cúmplice daquele drama. Como se fosse fisgado por um anzol, o espectador é colocado face a face ao drama daquela família, que poderia ser a sua própria história de vida. Identificação pura e inequívoca! No programa da peça, a Cia lança a indagação:
“O peixe dentro do aquário é a única testemunha das ações daquela família. Teria o bicho a mesma vida que os homens? Ou os homens aprisionam-se, qual o peixe do aquário?
O que chama a atenção em O Desvio do Peixe no Fluxo Contínuo do Aquário é o trabalho de grupo: além da extensa pesquisa, os atores executam em cena tanto a iluminação como o som (dos celulares, tablets e noteboocks) e o figurino é assinado por Daniel Ortega, que imprime uma interpretação emocionada; o ator, com desenvoltura, sai e entra na pele de Téo com maestria, envolvendo o espectador na profunda carga dramática do personagem. Saí do espetáculo extremamente sensibilizado e com inúmeros questionamentos sobre o viver dos nossos dias. Ressalto que a temporada é apenas de um mês, até final de outubro, com sessões apenas segundas e terças. Imperdível!
Fotos: José Rebouças
4 Comentários
Daniel Ortega
outubro 3, 2014 @ 19:18
Mauricio Mellone,
Que bom que o teatro pode contar com seu olhar.
É bom perceber que a sua escrita não depende de um “gostar ou não gostar” simplesmente. A sua atenção pela luz, pelo cenário, pelo figurino, pela atuação, pela dramaturgia, pela pesquisa, é de se admirar, de se aplaudir.
Vejo sempre, em tudo que escreve, o profundo respeito que tem pela pesquisa do ator, pelo tempo de elaboração de um trabalho.
Você é admirável e necessário. Parabéns por sua jornada.
Grande abraço e muito obrigado.
Maurício Mellone
outubro 6, 2014 @ 14:20
Daniel, querido:
Não sei se vc tem noção do quão importante
é pra mim receber este tipo de ‘feed back’.
Muito obrigado pelos elogios e conte com a minha presença,
sempre, em seus trabalhos.
Volto a dizer aqui o que te disse pessoalmente:
sua interpretação é tocante, emocionao quem o assiste.
Parabéns e sucesso!
abrs
Evill Rebouças
outubro 1, 2014 @ 14:51
Maurício Mellone,
Felizes aqui pelo seu olhar – que aliás, merece todo espaço e respeito porque o seu trabalho transpira seriedade, transparência e generosidade.
Gratidão pelos tantos anos de contribuição ao teatro! Hora dessas precisamos tomar um café para falarmos sobre teatro, pessoalmente!
Maurício Mellone
outubro 2, 2014 @ 14:00
Evill,
fico muito contente q vc aprecie meu trabalho e honrado
com sua participação aqui no Favo!
O café já foi aceito!
abr e obrigado de novo!