De Maurício Mellone em março 22, 2012
O Favo do Mellone está em festa nesta semana. Depois da colaboração de Carlos Maco Mendonça, que enviou especialmente da Espanha sua resenha sobre um espetáculo em cartaz em Madrid, do artigo delicioso de Zedu Lima sobre o debate com o escritor Milton Hatoum, fecho a semana com a publicação do conto Os sentimentos ruins de Mario Garrone. Com exclusividade para o blog, Mario volta com um texto instigante, que provoca o leitor a preencher as lacunas da trama. Num triângulo (seria amoroso ou odioso?), o leitor é induzido a ser coautor, uma vez que o ocorrido nas vidas de Araci, Moacir e Heitor fica subentendido. O estilo do autor fica mais definido a cada conto que temos a chance de conhecer — ele já publicou outros dois aqui, além do romance O homem infeliz (Ed Imago), o que demonstra sua evolução e crescimento profissional. Mario, obrigado pela confiança em mostrar ao público, em primeira mão, seus contos por meio deste blog. Aos meus seguidores, boa leitura e deixem seus comentários: o Garrone e eu vamos adorar!
Os sentimentos ruins
O Heitor empurrou o professor Moacir com o pé e as duas mãos. Xingou rente ao ouvido e empurrou.
Havia ódio, havia fúria. O amor verdadeiro sem posse é tão raro. Detestar é uma coisa que vem correndo. Sentimento bonito custa.
Não havia ninguém na hora. Só os dois. Embora seja muito difícil não ter mais alguém. Sempre aparece uma pessoa, um aluno, o homem que limpa a privada e recolhe o papel higiênico sujo dos outros.
Se o Heitor não fosse bonito dificilmente a Araci teria olhado como olhou, encostada na parede, um olhar de quem busca, de quem não faz outra coisa senão querer a salvação pela carne. Um rapazinho qualquer não teria provocado o mesmo deslumbramento, se bem que haja sim quem se deixe levar pelo feio, sucumba ao disforme.
A Araci queria falar com o marido sobre a atitude mole do encanador, que só enrolava e fedia, aquele tanto de poeira na casa e a nojeira do banheiro com a catinga.
O professor Moacir tinha obrigações, tinha aula. Ele não iria largar as tarefas para dar uma dura no cara. Ir lá para quê, Araci? Com o celular, hoje em dia, ir não serve para nada.
Olhar uma vez faz com que se queira olhar mais. A Araci até quase se esqueceu do cheiro de bosta na casa quando o Heitor passou e olhou sem querer. Ele não iria olhar para ela senão sem querer. A Araci nunca teve nada demais para que um adolescente bonito visse e sentisse vontade.
Olha-se e depois o amor nasce? Ou nunca chega a nascer, nunca nada passa disso de querer ter o corpo do outro para si, a boca, as mãos, o nariz?
Além da primeira, numa manhã, quase às dez, foram mais três visitas sem nexo. Em anos e anos de magistério, quantas vezes a Araci tinha ido ver o marido? E, num espacinho de um mês, quatro a troco de quê?
O professor Moacir estranhou como qualquer um acharia anormal a Araci de repente passando toda hora no colégio para nada. Se o encanador foi a razão de ela ir uma vez e se era um absurdo ter ido porque o homem embaçava, que sentido tinha voltar, Araci?
Casamento sem amor o que tem! Sem amor e sem sexo. Ainda que hoje em dia todo mundo separe e ninguém tenha mais paciência, o que tem de casal que fica!
O professor Moacir nunca amou a Araci e a Araci não casou porque amasse. A razão não interessava para os outros. Ninguém tem que dar satisfação e revelar o motivo. A discrição sempre foi a tônica entre os dois. A Araci tinha sua loja de lingerie para cuidar, tinha a casa, as plantas. Sempre há uma coisa que faça a pessoa sair da cama de manhã e insistir.
Só na terceira visita o Heitor percebeu que o professor Moacir era o marido da tal que o olhava com audácia, que ela era mulher do homenzinho escroto que dava aula de matemática e não ria.
Rir do que se a mulher dá de ir, se até parece louquinha? Se ela lá toda hora como se fosse natural professor receber família, cachorro?
Da terceira vez, além de o Heitor descobrir quem era a mulher, o olhar que ela dirigiu ao moleque era o de quem não está nem aí se há marido, se há família, se há leis, se o senso comum condena, se o Freud era ou não era a favor.
Concretizar o ato sexual com um menino de quinze é crime. Não se tolera que alguém maior de idade se atreva, o mundo é claríssimo. Ainda que o menor seja até capaz de saber mais coisa, a precocidade não atenua. É crime!
Na quarta vez o professor Moacir flagrou os olhos da Araci olhando o Heitor no corredor, uma mulher madura flertando com o mocinho em pleno local onde o marido ensina.
O professor Moacir não toleraria que houvesse uma quinta, que ela fosse indefinidamente ao colégio. Há a reputação, há um nome a zelar, há o prestígio conquistado ano a ano. Não se pode permitir que o desejo destrua.
Ser a Araci a mulher de quem era pesou. Havia nisso um quê de afronta, de ultraje. A Araci em si não teria despertado nada no aluno, se bem que sempre haverá um jovem que nutra uma tara.
O desejo acomete. O amor sabe-se lá se é amor ou se é só vontade de ter a pessoa para si, a companhia que impeça o vazio, que atenue. Desejar é para todos. Amar é mais raro.
O Heitor usou as duas mãos e um pé. Não foi por outra razão que ele não voltou hoje para casa na hora do almoço. A única intenção era essa: se esconder no banheiro e não ser visto no turno da tarde para depois, quando o professor Moacir descesse a escada e não houvesse ninguém, se bem que é tão difícil não haver alguém na hora que veja e conte.
O professor Moacir não admitia conversa na sala de aula. Quem falava era ele. Aluno só tinha de abrir a boca se houvesse uma pergunta relacionada à aula ou se ele quisesse que o aluno falasse. Em hipótese nenhuma falar com o colega, pedir borracha emprestada, comentar sobre o jogo da noite passada. Quem dá moleza para aluno se ferra.
Não se constrói uma reputação sem esforço, sem luta e sem abnegação. A respeitabilidade vem com a renúncia, com a capacidade de se esquivar do perigo, do abismo, de tudo o que representa ameaça à imagem moldada com inteligência. Um professor que se preza e que preza as normas não se entrega aos sentidos se os sentidos incitam ao crime. Um professor se contém, não se permite. Ou poderia ser sua ruína!
A Araci não voltou ao colégio. Não houve uma quinta por que não tinha que haver. Voltaria para quê, se havia a loja de lingerie? Se tudo o que ela queria podia acontecer na loja de lingerie quando as duas balconistas voltavam para casa e ela abaixava a porta um pouquinho depois das sete?
A Araci poderia ser presa se a mãe e o pai do Heitor descobrissem, mais a mãe do que o pai. Pai costuma gostar de saber que o filho dá conta, se a mulher se oferece não há problema nenhum. A mãe podia xingar, ofender, chamar a polícia, armar um escarcéu. Ah, e se o pai também fosse contra o negócio, aí a Araci estava frita!
Do amor que havia, se é que era amor, ninguém nunca soube. Quem haveria de saber do amor que o homem não mostra, o tempo todo guardado? Se é que havia alguma paixão, se não era só desejo, sexo, tara, vontade de ficar nu frente a frente e perder toda vergonha.
O Heitor não tinha a mínima ideia de que houvesse qualquer coisa. Não tinha como ter ideia nenhuma e se tivesse não ia gostar nada de saber do que havia. O professor estava lá para ensinar, para expandir o horizonte do aluno, para ajudar a ampliar a visão, instigar a turma a pensar com a própria cabeça, ainda que isso nem sempre aconteça. Na verdade, acontece pouquíssimas vezes. Pensar leva tempo, custa, não é qualquer um que está a fim. O papel do professor é dar a matéria, cumprir o programa, esclarecer toda dúvida. Uns são frios e distantes. Outros são mais camaradas. Há os condescendentes, os moles, os frouxos. O professor Moacir não dava mole. Com ele gracinha nenhuma. O respeito em primeiro lugar. Entre mestre e aluno é necessária a distância. Sem rigidez na disciplina tudo vira baderna. Professor não tem nada de ser amigo de aluno. Amizade não entra. Amor muito menos. Sexo então!
Amar não é toda hora. Desejo aparece mais. A Araci só sabia que o corpo comanda mais que a cabeça. Não é mesmo todo mundo que controla.
Havia silêncio no corredor porque estava em curso a última aula. O Heitor sabia que o professor Moacir saía mais cedo na quinta. Talvez a Araci tenha dito. A Araci devia saber, embora ela não soubesse de nada do que ia pela cabeça do marido.
O professor Moacir estava lá para dar aula, ensinar o aluno a cultivar o raciocínio, o pensamento lógico. Ninguém ia imaginar o professor tendo devaneios. O professor Moacir respeitava o colégio da elite. Se a pessoa tem noção do perigo, não vai entregar de bandeja o que custou tantos anos. O que houvesse de humano e falho, o professor Moacir administrava, retinha, escondia. Ele nunca iria deixar o desejo sair!
Nem em sonho o Heitor poderia. Não só o Heitor. Qualquer um duvidaria. Ninguém nunca pensa que possa haver o desejo onde o desejo não é nenhum pouco bem-vindo.
Se um acidente provoca sequelas graves, é preferível a morte. A morte é melhor do que não poder ser mais quem se era, ainda que haja quem prefira a vida. A vida em primeiro lugar, em qualquer circunstância, sob qualquer condição. Sem a fala, sem a visão, sem as pernas. A vida! Sei lá.
Casamento sem diálogo, sem cumplicidade o que tem! Ninguém mais tem saco para aguentar casamento, mas o que tem de casamento por aí em que o marido mal olha para a mulher e a mulher não admite que o marido em hipótese nenhuma lhe dirija a palavra. Não iria então ter de tudo no mundo? Marido a fim? Marido que quer? Que quer o que a lei não permite, o que a moral vigente proíbe, o que a religião não aceita, ainda que até mesmo tantos bispos?
O Heitor achou sim a Araci meio louca pelo olhar abusivo. O professor Moacir também considerou fora de propósito a mulher aparecer para olhar o rapaz no colégio. Alguma coisa estava acontecendo com a Araci, nem aí com o marido, nem aí com ninguém e o recato.
Meio louca a Araci, meio louco o Heitor por topar ir à loja de lingerie da mulher quando passava das sete só porque a mulher era casada com o professor Moacir e ele nunca tinha ido com a cara do escroto.
Se há desejo no homem, pode não haver amor nenhum. Amor é complicado. É dificílimo amar alguém de verdade!
Em vez de ir para casa, Heitor ficou lá no banheiro à espera da hora em que fosse possível, em que o professor Moacir saísse da sala dos professores e se dirigisse para a escada. Havia tanta fúria nos braços e na perna que empurrou a bunda!
Se é amor, se é só desejo, não importa. Não serve para nada desvendar o sentimento confuso do homem. Do amor também pode vir coisa ruim. Quem ama também prejudica.
Professor nunca devia humilhar aluno. Aluno nunca devia xingar professor de corno e empurrar na escada. Sem respeito, a coisa desvirtua. Há escola em que a baderna toma conta. O ideal é o equilíbrio. Nem predomínio do mestre nem predomínio da classe. Com o professor Moacir, quem mandava na sala era ele!
Cabe ao professor escolher o aluno que ele quiser. Decidir chamar um ou outro é com ele. Não há critério para que ele diga um nome e o aluno se levante e tenha de ir lá na frente. Se ele chama a ou b, a razão não importa, ninguém tem nada com isso. Aluno não manda.
O Heitor detestou ouvir o seu nome vindo da boca do professor Moacir assim que a aula começou. Mais de quarenta na classe e o puto tinha que escolher justo quem?
A exposição da ignorância incomoda, machuca, ninguém se sente bem exibindo a inépcia. Não é nada agradável estar-se na frente de todos e ouvir a ironia do mestre, a argúcia, o sarcasmo, a frieza, a análise dura e brutal do desempenho ridículo e burro e ainda ouvir gente rindo, coleguinhas de merda, quem é amigo de quem?
Se havia alguma coisa certa para o professor Moacir na manhã desta quinta-feira não era o calor escaldante nem o trajeto sempre igual da casa ao colégio ou sequer o desjejum com torradinhas com alho e a ingestão de todos os comprimidos logo depois do leite morno com café e uma colherinha de açúcar.
Até onde vai o desejo, em que momento começa o amor, o amor que não se demonstra, que nunca se pronuncia, preso, incrustado na língua? Se é que em algum momento começa a ser amor. Se não é tudo apenas exacerbação da libido.
O que havia hoje de certo para ele era o mal. Mais o mal do que tudo. Mais do que a chuva certeira que já está começando a cair como cai toda tarde, do que o suor nestes dias sem brisa. O mal engendrado no cérebro, na boca de onde sairiam as palavras cruéis, ofensivas, críticas, devastadoras. A única intenção do professor Moacir era ferir.
Foram três noites em que a Araci esperou as balconistas saírem. Se alguém visse o Heitor entrar e chamasse a polícia, a Araci estava frita. Cada um trepa com quem quiser, ninguém tem nada com isso, mas com menor dá cadeia e a sociedade não dá esse direito ao adulto. Se a mãe dele soubesse e fizesse barraco, aí sim. Não é toda mãe que aceita, não é todo pai que admite que o filho coma, dependendo de quem.
Passava um pouquinho das sete. A Araci até dispensava as moças faltando quinze. Não havia cabeça para vender sutiã e calcinha na noite em que ela esperava o rapaz.
Encostado no poste, sem nenhuma certeza de nada, se veria alguma coisa, se havia alguma coisa para ver, o professor Moacir até comprou drops no bar e esperou. Podia não ter nada ali, ele não tinha nenhuma garantia de que ontem houvesse a cena que confirmasse a desgraça. As duas outras vezes em que o Heitor foi e a Araci abaixou a porta em seguida ele não estava lá na hora para ver. Mas ontem ele ia ver o Heitor entrando. Era só esperar um pouquinho que dessa vez ele ia.
Mario Garrone
Fotos: imagens capturadas do Google
2 Comentários
Mercedes
março 22, 2012 @ 18:10
Mario Garrone, o mesmo talento de sempre, parabéns pelo excelente texto!
Maurício Mellone
março 23, 2012 @ 14:49
Mercedes:
Nosso amigo está
cada vez mais craque com as palavras!
Já falei com o Mario sobre nossa festa, que vai
acontecer dia 5/05, na casa do Marcelo Brettas.
Será uma ótima chance de nos reencontrarmos!
Obrigado pela visita
bjs