De Maurício Mellone em maio 30, 2019
Por definição literal, distopia (a não utopia) é a demonstração hipotética de uma sociedade futura, definida por circunstâncias de vida intoleráveis, que busca analisar de maneira crítica as características da sociedade atual. E o novo trabalho de Kiko Rieser, A vida útil de todas as coisas, em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade, se encaixa exatamente neste conceito.
No entanto, o espectador não percebe, com as primeiras cenas, que a trama se localiza num futuro distópico, pois o início é com um homem comum, interpretado por Eduardo Semerjian, concentrado no computador; seu pai, vivido por João Bourbonnais, chega empolgado por ter ganho no jogo de boliche e o filho pouco responde às indagações dele e nem percebe o início da perda de memória do pai. O homem só se atém ao estado de saúde do progenitor quando é questionado pela filha, interpretada por Louise Helène.
A partir daí, com a busca de tratamento para o ancião, é que a solução proposta pela secretária da clínica (Luciana Ramanzini) — troca da peça por outra em boas condições — choca o homem, que passa a lutar contra o comércio de órgãos e a substituição de pessoas por máquinas.
O espectador percebe que o período retratado na peça é num futuro indefinido no exato instante em que o personagem central cai em si e entende que a peça a ser substituída é exatamente o seu pai, parte inerente de sua história de vida. Ele então começa uma guerra, não somente contra a clínica, mas principalmente contra o status quo, contra o estabelecido, contra as normas vigentes de então. Ele procura, por todos os meios disponíveis — de veículos de comunicação virtual, a redes sociais até manifestações em praça pública—, chamar a atenção para a importância do afeto e do amor nas relações humanas. O óbvio para os nossos olhos de hoje. Entretanto, ninguém adere a seus apelos, nem os próprios familiares. Parece uma guerra perdida, ele nada contra a maré!
A crítica rigorosa do texto às atitudes humanas (desprezo ao amor, menosprezo ao próximo em contraposição ao apego à tecnologia e à comunicação virtual) não se refere ao futuro distópico da trama, mas ao nosso cotidiano contemporâneo!
“Os procedimentos tecnológicos ficcionais desta peça são um pano de fundo que alicerça uma discussão a respeito de questões absolutamente humanas e de estruturas socioeconômicas seculares. A montagem opta por situar a ação num tempo que, embora indeterminado, constitui o nosso presente”, afirma Kiko Rieser.
A vida útil de todas as coisas tem um efeito contundente sobre a plateia. Ao final, o elenco recebe aplausos, mas nota-se um desconforto geral provocado pela força corrosiva do texto de Rieser. Não há trégua e o desfecho é melancólico e depressivo. Saí da sala de espetáculo com a sensação pessimista que o autor dispensa para o futuro do Homem. Mas o dramaturgo avisa: “Mais que uma elegia à humanidade adormecida ou uma previsão pessimista, a peça é um alerta a quem souber ouvi-lo”.
Com um cenário criativo de Marisa Bentivegna, a montagem se vale da sintonia em cena dos quatro atores, com destaque para a sensível interpretação de Eduardo Semerjian e João Bourbonnais. Com ingressos gratuitos, a temporada se estende até 15 de junho e depois reestreia no Teatro do Núcleo Experimental. Confira.
Roteiro:
A vida útil de todas as coisas. Texto e direção: Kiko Rieser. Assistente de direção: Amazyles de Almeida. Elenco: Eduardo Semerjian, João Bourbonnais, Louise Helène e Luciana Ramanzini. Cenário: Marisa Bentivegna. Figurinos: Kleber Montanheiro. Iluminação: Aline Santini. Trilha original: Gregory Slivar. Visagismo: Louise Helène. Design gráfico: Angela Ribeiro. Fotografia: Heloísa Bortz. Vídeo: Ricardo Montenegro. Direção de produção: Selene Marinho. Produção executiva: Marcela Horta. Produtor Associado: Kiko Rieser.
Serviço:
Oficina Cultural Oswald de Andrade (70 lugares), Rua Três Rios, 363, tel. 113222-2662. Horários: quinta e sexta às 20h; sábado às 18h. Ingressos: gratuitos. Duração: 95 min. Classificação: 12 anos. Temporada: até 15 de junho.
Teatro do Núcleo Experimental (65 lugares), Rua Barra Funda, 637, tel. 113259-0898. Horários: sexta e sábado às 21h; domingo às 19h. Ingressos: R$ 20 e R$10. Temporada: 28 de junho a 21 de julho.
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