De Maurício Mellone em outubro 23, 2013
Um teatro tradicional não poderia reproduzir fielmente o universo nebuloso e marginal da obra do escritor, poeta e dramaturgo francês Jean Genet. O local escolhido para a montagem de Genet o poeta ladrão, peça de Zen Salles que acaba de estrear na cidade, é ideal: o alternativo Espaço Beta, do SESC Consolação, que está devidamente adaptado para retratar o submundo da obra de Genet.
Logo ao entrar, o público é convidado a se sentar em duas arquibancadas, que ficam em paralelo à pequena sala retangular. Desta forma, a plateia assiste a tudo de camarote, como se estivesse de frente a uma rua, onde ladrões, gays, prostitutas, gigolôs, travestis ganham a vida.
A convite do diretor Sergio Ferrara, Zen Salles escreveu o texto tendo como fonte de pesquisa a autobiografia do escritor, Diário de um ladrão, e Genet: uma biografia, de Edmund White, além de personagens e situações das peças e livros do dramaturgo, como Nossa Senhora das Flores, O Balcão, As Criadas.
“Não sou totalmente fiel à história de vida dele. Nem ele mesmo o foi, como costumava dizer. O Genet que me interessa é o que habita as sombras, o Genet que ama os que erram, o Genet que tem tesão pelo crime, o Genet que é poeta e, como tal, sabe esgotar o mundo com a sua poesia viva”, explica Zen Salles.
Dentro desta proposta de licença poética, a peça começa exatamente em 1969, quando Genet veio ao Brasil para a estreia de O Balcão, montagem revolucionária de Ruth Escobar e dirigida pelo argentino Victor Garcia. Ao saber que vivíamos numa ditadura e que muitos artistas eram presos, Genet se identifica com a situação e relembra sua juventude vivida nos anos 40 em Paris, onde foi preso inúmeras vezes.
De forma fragmentada e sem cronologia, as cenas mesclam desde momentos da realidade (com Genet se prostituindo como garoto de programa), até seu confinamento na prisão (onde começa a escrever sobre mundo das ruas) e seus delírios.
Em entrevista exclusiva a Michel Fernandes, do site Aplauso Brasil, o diretor explica a concepção da montagem:
“Trabalhei com os atores a possibilidade de revelarmos em cena, por meio do texto e de imagens, a união entre o sagrado e o profano, elementos recorrentes na literatura de Genet. Com uma linguagem fragmentada constituída de cenas curtas e objetivas, trabalhamos estados alterados de consciência da personagem central (Genet) que, em delírio e devaneio, vê e imagina o mundo de acordo com sua loucura, na solitária de um presídio”, diz Sergio Ferrara.
A montagem é vigorosa, eletrizante e prende a atenção do espectador desde a entrada. O elenco é coeso e os atores, além de lindos, estão entregues de forma visceral ao universo de Genet; difícil ressaltar a interpretação de um em detrimento dos demais, mas Ricardo Gelli como Genet e Nicolas Trevijano vivendo Divina, têm performances arrebatadoras — a cena em que ambos se veem pela primeira vez na Taberna é emblemática, com o tempo paralisado para o encontro de duas almas gêmeas.
Sergio Ferrara confessou ao Aplauso Brasil que desde 1980 pensa em montar Jean Genet e que com este trabalho iria “viver um raro momento da minha vida de diretor”. Tenha certeza, Ferrara, Genet o poeta ladrão é sem dúvida uma das grandes montagens do ano e um marco em sua carreira profissional.
Fotos: Vivian Fernandez
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