De em abril 23, 2012
Novamente tenho a honra de poder contar aqui no Favo com a colaboração do meu amigo, o escritor e jornalista Zedu Lima. Ele não faz apenas uma leitura sobre um filme, mas, ao contrário, coloca lado a lado dois lançamentos recentes do cinema nacional, Xingu e Heleno, e os analisa tendo como ponto de partida a identidade do homem brasileiro. Uma visão crítica e elucidativa sobre o Brasil de hoje usando a arte (no caso a sétima) como suporte. Zedu, obrigado mais uma vez e aos leitores, aproveitem. Vou adorar receber a opinião de vocês nos comentários!
Identidade nacional
Não vê que me lembrei que lá/
no norte, meu Deus!/
Muito longe de mim,/
na escuridão ativa da noite que caiu/
um homem pálido magro,/
de cabelo escorrendo nos olhos,/
depois de fazer uma pele com a/
borracha do dia,/
faz pouco se deitou, está dormindo./
Esse homem é brasileiro como eu.”
Foi desse trecho do poema O Descobrimento, de Mário de Andrade que me lembrei de quando vi aquele índio brasileiro nas cenas do filme Xingu, dirigido por Cao Hamburguer. Porém, senti um inevitável e inconveniente desconforto ao perceber que não me identificava com aquele indivíduo de cabelos negros lisos e olhos puxados. Para mim, ele, nativo, era um estrangeiro, e não eu, descendente de iberoafricano. Herança atávica da colonização europeia? Espero que seja, assim não fico tão mal na fita.
Mas no decorrer da exibição, fui me identificando, ainda não com os índios, mas com os irmãos Villas-Bôas. O grande acerto do diretor Cao Hamburguer é não mostrá-los como heróis, mas como seres humanos comuns que abraçaram uma causa, nobre e complicada (como continua sendo até hoje, haja vista a atual contenta entre os índios pataxós e os fazendeiros na Bahia), da aculturação do indígena brasileiro. E os três atores que interpretam os irmãos Villas-Bôas absorvem plenamente essa idealização do diretor: Felipe Camargo, falador, pragmático e simpático, como Orlando; João Miguel, na certeira composição introspectiva de Cláudio; e Caio Blat, como Leonardo. Cada um deles mostrando o entusiasmo e as incertezas de uma empreitada, que teve início em 1944, da qual eles não tinham a menor idéia do que os esperava. Leonardo, o caçula, encarava como uma aventura sem maiores consequências. Cláudio levava a sério o projeto de aculturação do índio, desde que não violentasse nem descaracterizasse sua cultura. Mesmo assim, percebe-se no filme que ele tinha momentos de dúvida se estavam no caminho certo. Orlando, o mais político, procurava usar sua popularidade em benefício da causa. Há um diálogo emblemático dele com Cláudio, que o acusa de se deixar envolver com os políticos da época. Ele aponta para o irmão que sem essa sua atitude seria difícil realizar o que pretendiam. E é o que se vê até hoje. Mesmo pisando duro, Dilma Rousseff tem que fazer concessão ao Congresso para poder governar. Um traço comum, porém, une os três irmãos: “o homem cordial”, que caracteriza a identidade do brasileiro, segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda definiu em sua obra Raízes do Brasil.
Meu único senão ao filme é seu final, com a desnecessária apresentação do vídeo feito na época com a imagem real dos três irmãos, que, na quase duas horas de projeção, se fixaram na memória do espectador com a figura dos três atores que os interpretam. Para mim, deveria terminar com a imagem do índio kreen-akarôre, que, acreditava-se, seria a última tribo a ser aculturada, seguida do texto revelando que a maioria desses índios foi dizimada com a construção da Transamazônica.
Coincidentemente, estreou na mesma semana o filme Heleno, do diretor José Henrique Fonseca, que, revelando trechos da vida do jogador de futebol Heleno de Freitas, também reflete a identidade nacional num outro contexto. Afinal, não existe maior atividade que identifique o brasileiro do que o futebol. Assim como os irmãos Villas Boas, Heleno também mostra a cordialidade do brasileiro, notadamente fora dos gramados, quando, diz-se, ele era “uma lady” , ao contrário do tratamento troglodita que ele dispensava aos companheiros de equipe. Isso o difere de um Pelé e de um Neymar, pois, salvo engano, ambos são cordiais em qualquer momento. Algo me intrigou no filme: quando testemunho o deslumbramento e consequente decadência de jogadores como Adriano, credito, talvez preconceituosamente, a sua origem humilde que não lhe deu estofo mental para suportar a celebridade. Heleno, por sua vez, vindo de uma família abastada, advogado formado, também se vicia em éter e se deteriora com a sífilis num sanatório. Provavelmente, o vício fazia parte de seu repertório para ser célebre.
A grande falha do filme é não mostrar mais suas jogadas, mas privilegiar o homem problemático, num vai e vem em flash back, que desatenta o espectador. Mas em nada isso diminui a estupenda interpretação de Rodrigo Santoro. Em todo o momento se percebe sua intenção, não de se transmutar no personagem, mas de buscar e revelar sua alma.
Zedu Lima
Fotos: divulgação
2 Comentários
Cristina Souza
abril 24, 2012 @ 15:44
Embora não tenha assistido aos filmes citados pelo Zedu, o que devo faze-lo em breve, posso afirmar que como jornalista e cinéfilo de carteirinha, ele consegue encontrar o Ponto G de cada filme.
Cristina
Maurício Mellone
abril 24, 2012 @ 18:30
Cristina:
Exatamente o que o Zedu faz: une as duas obras sob a ótica da indentidade nacional.
Não deixe de assistir a ambos os filmes, vc vai gostar ainda mais depois de ter lido
este texto do nosso amigo.
Obrigado pela visita e volte outras vezes!
abr