De Maurício Mellone em dezembro 27, 2013
Com seu estilo marcante, em que ao deixar lacunas e omitir ideias, induz o leitor a participar da história e preencher os vácuos, Mario Garrone novamente me dá a honra de lançar aqui no Favo seu mais recente conto, A Decisão de Procópio.
Os personagens são muito bem delineados e por intermédio de suas falas o leitor logo passa a conhecer a dimensão psicológica de cada um deles. O que aquele chefe de família, de mais de setenta anos, resolve para a sua vida vai sendo descoberto no decorrer da trama. E as opiniões de cada membro da família são apresentadas sem que a decisão em si tenha sido revelada ao leitor. Este detalhe me chamou mais a atenção: Garrone usa dos parênteses para indicar de quem é a fala.
Leitura que envolve o leitor desde o título!
A Decisão de Procópio
A dez dias da festa de dona Pina, seu Procópio veio com a bomba.
Depois de um momento muda e perplexa, ela riu ao ouvir as primeiras palavras, o marido indo direto ao ponto. A mudez pelo choque, pelo inesperado, pela surpresa. Em seguida o riso para desqualificar o discurso, dar a mínima para aquilo, importância nenhuma para o que saía da boca do marido.
Setenta anos não é qualquer um que completa, ainda que hoje tenha aumentado bastante a quantidade de gente morrendo mais tarde. Fazer setenta ainda é um marco, dona Pina achava que era uma data que merecia.
Refestelada na rede da sala ouvindo uma banda de jazz, tudo o que ela queria era não ver pela frente nenhuma encrenca (antes a pasmaceira do que a vertigem).
Seu Procópio abriu a porta vindo da rua e suava no rosto vermelho de sol, quarteirões percorridos a pé a esmo. Suava não só pelo calor das ruas, mas pela dificuldade, pela necessidade de ter de dizer o que diria. Abriu a porta e ouviu a música americana tomando conta da casa.
Parecia que ia chover chuva de enchente e ela ia ter de lidar outra vez com as goteiras, já que o homem do telhado não tinha aparecido e com chuva forte passara a pingar na cozinha e no quarto. Haveria goteiras, isso haveria, e era desagradável que houvesse aguaceiro, transtorno numa tarde em que ela não queria fazer nada senão ouvir música e pensar no aniversário.
Seria um incômodo a tempestade molhando as paredes, o teto e o chão. Mas com isso se lida. Nada muda demais na vida de alguém só porque chove granizo e venta (espera-se que não). O pior era o resto, o marido em pé no meio da sala resolvido a falar.
O quase gargalhar foi uma tentativa de desmoralizar o que tinha sido dito quando o seu Procópio abaixou um pouco o som da música e começou. O próximo passo foi fechar os olhos e não vê-lo mais, só prestar atenção na força poderosa do pistom (não mais na altura que ela gostaria).
Milu, a filha mais velha, casada, não teve dúvida quando soube pela mãe.
Fechar os olhos e se ater à música é o tal do negócio que pode funcionar por um tempo, mas não se vai muito longe com isso se o homem decidir finalmente abrir a boca. Não se pode tentar ignorar o que é. O que é se impõe, invade a sala, em algum momento a música acaba e o que é está lá, não há jeito de impedir.
Tetê, a filha do meio, também casada, assim que soube concordou com Milu de cabo a rabo.
Uma festa marcada e de repente o incômodo, o constrangimento, o chabu. Dona Pina precisou encarar. Rir não bastava. Ri-se no começo tentando minimizar, desconstruir, não levar a sério, mas não se pode ir adiante com isso se o homem continua a falar. O riso morre e permanece o espanto.
Era um inferno sim a chuvarada ter vindo com força e as goteiras pingando, toda aquela ventania, a porra do homem que não viera ver o telhado. Uma hora, porém, o homem infame vem e conserta o que há de errado com as telhas e o problema some. É só preciso repintar as paredes.
Claro que há, disse Filó, a terceira e última filha, solteira, ao ser posta a par. Dessas mulherezinhas vadias e à toa.
Seu Procópio se pôs a falar que dentro de dois dias, no máximo dois, não mais, compreendeu? Nenhuma menção a mulher. Simplesmente ele num flat, outros hábitos, nada mais de rotina, embora rotina seja o que há e haverá, não se escapa de se estar diariamente a repetir o que se fez ontem e se fará amanhã.
O jazz então como fundo da cena, ele ali disposto a destravar, a não seguir mais um dia atrás do outro da mesma forma como sempre tinha feito, a não repetir, ainda que um dia monótono e enfadonho nunca seja inteiramente igual a outro dia insípido e cacete.
Mulher nenhuma no pedaço. Dona Pina desdenhou da hipótese levantada pelas filhas, duvidou que houvesse, fez pouco, ele não era homem para isso. O homem tem de ser viril para que haja!
Então papai não é homem como?, disseram as três filhas (quase em uníssono) para as quais havia sim uma fulana no pé do pai, e por haver, somente por haver, ele enfim saía atrás do que não devia no momento da vida em que não se recomeça nada.
Um marido precário, chinfrim, aquém, insuficiente, apático e medíocre, que deixa muito a desejar e cujo beijo não se sabe há muito o gosto, entende? Mulher nenhuma ia querer. Quem seria a louca (dona Pina num tom exaltado sem se aperceber por certo que com isso desqualificava também a si)?
A tempestade fazendo todo o estrago e o seu Procópio com a coisa resolvida, a decretar que em dois dias, não mais, no máximo dois, está me ouvindo?
Um homem quem sabe houvesse, poderia haver. Às vezes é tudo o que há, sempre houve. Um rapaz andrógino, um pederasta cafajeste, um ancião pervertido. De repente tem homem que resolve admitir que beija marmanjo na boca com a língua da qual havia tempo ela, dona Pina, não sentia a umidade, a intromissão. Há homem que custa a perder a vergonha na cara, mas uma hora perde (dona Pina a um passo de jogar um pires na janela).
Dona Isaurinha, viúva alegre e irmã mais velha do seu Procópio, instada a agir pelas sobrinhas, perguntou a ele quem era a pessoa que o fazia sair de casa aos setenta e cinco anos de idade. O que poderia haver lá fora de atrativo, de estimulante? Se Pina era uma mulher difícil de aturar (e dona Isaurinha sabia muito bem como era duro engolir a cunhada), a ocasião para o rompimento era imprópria, impertinente.
E ele ia dar conta quando de satisfazer mulher? Que putinha haveria de querer um traste, sem charme, cujo pau nem sobe (dona Pina quase fora de si)? Se quer ir, que vá de vez à merda, que nunca mais apareça, mas o dinheiro, ah, o dinheiro, o patrimônio! Que fique bem claro, é nosso, é
é meu, vou procurar logo, logo o doutor Matozinhos e vamos ver em que pé a coisa toda fica. E se vier doença grave, debilitante (porque doença grave vem), que procure a irmã, o irmão caçula beberrão, Orídio, que se recusou a intervir para que seu Procópio não fosse.
Ir para onde, me diga, criatura, se a vida está no fim, se não abandonou a família antes, se aturou o que podia não ter aturado na hora em que haveria chance de reconstruir a vida? Homem não aguenta ser sozinho, é incapaz, inábil, se arruína, desaba, decai, sucumbe. Se não há mulher nenhuma para os braços de quem você vá, lá fora só se encontram a solidão, a dor miserável e a ruína (dona Isaurinha).
As goteiras molhando as paredes e as poças no chão. O CD de jazz terminado e seu Procópio em pé com tudo já dito, mais ou menos dito, nem tudo, uma parte.
Seu Procópio não quis em momento nenhum pensar na dor. Tentou não pensar na mágoa, no ressentimento todo que acarreta. Se uma pessoa decide que vai e não volta, há consequências, não se pode agir sem que advenham a raiva, o desgosto, a sensação de fracasso em quem fica abandonado, em quem se vê só sem a vida de antes, mesmo que a vida de antes não valesse, nunca tivesse valido, ou valeu por um tempo pequeno e o resto foi um tal de acostumar-se ao tédio, ao nada. Se se pensa no outro, a dor que o outro sentirá impede, paralisa, bloqueia. Sempre alguém sofrerá pelo gesto e o sofrer de quem perde é a porta trancafiada na frente que terá de ser arrombada por quem vai. Pouquíssimos admitem que ir é uma possibilidade, que quem sempre esteve decida não mais estar.
Numa altura avançada da vida não se deve querer nada senão saúde, mobilidade nas pernas trêmulas, controle motor, ausência de gripe forte. (Tetê condenando velhos em geral que se deixam seduzir por raparigas).
Pessoa nenhuma. Não há! Antes ele fosse atrás de uma solteira velha, uma divorciada, uma viúva triste que o acolhesse, antes houvesse a tal jovem vadia e arrivista que o quisesse, e não a loucura de querer o que não se vê nem se atinge, o que não nos foi dado conhecer nem sentir, o que não nos cabe (dona Isaurinha olhando para as sobrinhas e ao mesmo tempo para ninguém).
Se não existisse, ora, ora, titia, por quê? Tenha dó a senhora! É praxe homem velho e enrugado cismar de querer menina que não suporta velho e sabe enganar o patife, que conhece os meios de agarrar o imbecil, que dá em cima, gruda, encarna, quer fazer pé de meia à custa, se lixa se o velho tem família e a mulher dele está prestes a fazer setenta e convidou meio mundo para o salão Very Special Place (Milu).
Não há mulher no meio, mulher nenhuma. O pior de tudo é que não há ninguém lá fora. E quanto à excrescência, à abominação da Pina vir com essa porcaria de haver talvez um homem, um rapaz imberbe, um desvirtuado maduro, alto lá, eu não admito, uma esposa não diz isso do marido nem brincando. Há o que não se fala, o que nem sequer se insinua de leve sobre o pai das filhas (dona Isaurinha, se abanando nervosamente com um leque português rendado).
O que havia no caso, o que há, o que se soube (embora se saiba pouco) é que seu Procópio, sem flertar com ninguém, sem mulher nem homem à vista, decidiu que não dava mais. Ou daria, como sempre deu, como cada um se vira para que dê, para que seja minimamente viável estar no mundo e não se indispor com todos indo junto para a frente que nem boi, carneiro e vaca. Ele, porém, não queria mais, não estava a fim de contemporizar. Decidiu por si ou a coisa foi crescendo sem que se pudesse controlar, um sentimento de insatisfação tardio de que tudo o que se tem é nada ou quase, a vida não deveria ser só isso, não poderia ser só isso. Não, não iria mais continuar sendo aquele que ainda era e de quem apenas começava a se desprender, não se desprendera ainda o suficiente para que fosse outro, para que se pudesse dizer, com convicção, que era outro, não mais o mesmo, o habitual, aquele um a que até então se conformara em ser a vida toda, o que não deveria ter sido e, não obstante, fora.
Mario Garrone
Fotos: divulgação
2 Comentários
Ivandira T Barros
dezembro 29, 2013 @ 21:20
Acabo de ler A decisão de Procópio, de Mário Garrone ,e como alguns outros , que tive oportunidade de ler,me prendeu muito a atenção.
Ele escreve, narra,gostoso!!!!!!!!!!!!!!!
Que venham muitos contos de Mario Garrone.
Obrigada
Maurício Mellone
dezembro 30, 2013 @ 15:43
Ivandira:
Sou até suspeito, pois conheço o potencial da escrita
do Garrone desde os tempos que cursamos Jornalismo, há mais de 30 anos!
Os livros dele tb são muito bons, mas a técnica e o estilo dele para
as histórias curtas (os contos) são mesmo envolventes e fazem com que o
leitor não se desgrude do que está lendo!
Já disse a ele: tomara q em 2014 ele consiga reunir todos os contos e lançar
um livro!
Muito obrigado por sua participação, volte sempre!
abr e feliz ano novo!