De Maurício Mellone em dezembro 23, 2014
Minha campanha para que Mario Garrone lance um livro de contos, todos publicados aqui no Favo com exclusividade, está surtindo efeitos: o escritor acredita que este, A quase fulminante morte do doutor Bocaiúva, que você lerá em seguida, deverá ser o penúltimo antes de procurar uma editora para propor o novo livro. Agora é esperar pelo último conto e torcer pela chegada do livro!
Sem mistérios, já que no título há o anúncio da morte do personagem, o autor envolve o leitor na trama, que escancara a intimidade de uma família: o pai está envolvido em negócios escusos no ministério, a mãe protege o marido e os filhos, um casal, têm atitudes opostas diante da vida. Tudo é acompanhado de perto pelos empregados. O leitor, em determinado momento, parece que está no meio da cena descrita pelo escritor! Delicie-se e, se puder, deixe seu comentário ao final!
A QUASE FULMINANTE MORTE
DO DOUTOR BOCAIÚVA
Uma espuma começou a sair pela boca. O rosto tinha a brancura do gesso e da cal. Os olhos pediam socorro. O suor encharcava toda a testa, a voz saía frágil, fraquinha, a língua enrolada dificultava e obstruía a fala, muito mais gemido que fala, fala praticamente nenhuma mais naquela hora que precedia o fim, a espera inútil da vinda da ambulância que chegaria tarde demais ao hospital, ele morto pelo caminho congestionado na hora infernal do rush (Mariinha do Céu assim disse, ou quase).
Gessi soltou um grito agudo, irritante, metálico. Em seguida, descontrolada, dirigiu-se duramente à filha: Não fosse você ter vindo com essa, mais essa coisa absurda, e nada disso, entendeu?! Quer matar o seu pai, quer? Quer que eu morra junto?
Ouvir-se-ia de fora mesmo sem que se quisesse saber de nada do que ia pela vida dos outros, tal o estado alterado das vozes femininas (Mariinha do Céu a gritar ao lado da patroa. Gilda, ao contrário, olhando tudo afastada, em silêncio, indiferente), o doutor Bocaiúva pertinho da morte certa, caído no sofá, a boca espumando e Gessi, a Gê, a culpar só a filha, a dizer que se não fosse ela, não tivesse ela dito, não houvesse Cacilda ousado dizer. Tem coisas que um pai não suporta ouvir, não aceita! Pai que é pai não tolera!
O nervosismo na casa não era de hoje. Havia coisa de sobra desestruturando o lar. Cacilda não era a única a provocar desequilíbrio, tensão, taquicardia no pai. Vinha de semanas o mal-estar que impedia que a vida fosse para a frente com calma.
O início de tudo o que viria a causar grande sobressalto foi a notícia do roubo, o momento em que a repórter falou na TV.
Haverá, por certo, quem dirá que não, que não foi aí. Que o início foi outro, antes, muito bem lá para trás. Quando alguém matutou consigo e apareceu pela primeira vez na cabeça de alguém a ideia. Quando, antes de tantos se sujarem em conjunto na orgia no fundo do lodo, uma mente sozinha se pôs a arquitetar primeiro a maneira certeira de agir.
Se um escândalo financeiro vaza, é porque, obviamente, um dia uma cabeça deu tratos à bola, arregimentou pessoas e se propôs a colocar de pé um esquema sujo. O fato, porém, é que não se teria como creditar nem sequer à posterior montagem coletiva do crime do bando e à distribuição de tarefas o ato inaugural do que iria um dia provocar impaciência no doutor Bocaiúva e deixá-lo em estado de inquietação permanente (o ato inaugural não seria tampouco aquele em que a Polícia Federal recebeu uma denúncia e resolveu ir a fundo na coisa).
O que desencadeou a perturbação e o stress na vida do doutor Bocaiúva seria, isso sim, a fala da repórter ao vivo contando e tornando de conhecimento geral o que foi feito nas sombras e nas sombras se pretendia que continuasse indefinidamente a ficar.
Não tivesse vindo tudo (ou parte) à tona, as horas iniciais em que primeiro se discutiram os meios de pôr em prática o crime organizado seriam apenas e unicamente o ponto de partida do enriquecimento ilícito bem-sucedido de cada participante do bando (isso eu acho).
Responsabilizar a filha pelo que veio a ocorrer, unicamente a filha, como faz Gessi e Alfredinho, é, convenhamos, uma outra possibilidade não totalmente arbitrária e errônea, levando-se em conta o estado alterado do doutor Bocaiúva, o inconformismo e o seu subsequente colapso depois do que foi dito por Cacilda (conforme nos diz Mariinha do Céu, a Céu, a cozinheira). Embora, e isso é importantíssimo que se frise, antes, bem antes de Cacilda dizer o que disse o clima não andasse nada bem na casa (um nervosismo anormal havia no homem, é claro que havia, atesta a arrumadeira Gilda, a Gi, cinco anos de bons serviços prestados na casa, limpando a sujeira dos banheiros e dos quartos dos outros).
Se culpa de Cacilda houve, porém, culpa sempre haveria no mundo quando alguém batesse o pé e insistisse. Quando se resolvesse ir por um caminho e não por outro, o caminho pelo qual esperavam que se fosse. Não ir por onde se quer, por medo, por vir a causar decepção a outrem, seria abrir mão de si, do que se é, do que se poderia vir a ser, caso se fosse sempre adiante.
Alfredinho, o irmão — o único irmão de Cacilda, dois anos mais velho, solteiro, atlético, bombado, economista gastador contumaz do dinheiro do pai, bon vivant, namorador de beldades, atrizes, modelos, ricaças, gigolô de senhoras abastadas e sozinhas dispostas a pagar toda a conta dos restaurantes de luxo antes dos carinhos falsos no apartamento da dona, dos beijos mentirosos no motel, do sexo perigoso no carro blindado de vidro escuro estacionado em local proibido —, quando soube pela mãe da conversa na sala antes do mal-estar derradeiro do doutor Bocaiúva, disse em tom raivoso: Tem merda na cabeça essa puta?
Irmãos que não se dão há em pencas, incompatibilidades, desavenças, temperamentos opostos inconciliáveis, visões de mundo divergentes, díspares, falta total de assunto entre as partes, rompimentos definitivos decorrentes de certas palavras que não deveriam ter sido ditas e foram. Entre Cacilda e Alfredinho havia um rio e o rio era largo e fundo, caudaloso.
Alfredinho, desde pequeno, havia sido o popular enturmado. Cacilda era a tímida, a estudiosa, a de pouca fala, a que prometia ser o orgulho intelectual da casa, aquela a quem não se precisava advertir sobre responsabilidades e obrigações, sobre compostura e conduta. Uma menina e uma moça a desincumbir naturalmente as tarefas, os deveres. Dela não haveria de vir desgostos, gestos intempestivos, decepções. O máximo que se poderia dizer a Cacilda como advertência é que não lhe convinha tamanha reserva e introspecção, fechadinha demais da conta em si.
O doutor Bocaiúva via futuro na filha pela inteligência, pelo preparo, pela curiosidade demonstrada sobre os assuntos mais diversos, um interesse quase igual pela ciência e pelas artes, uma mente inquieta a querer investigar e se aprofundar, a destrinchar o que lhe aparecesse pela frente (Cacilda com suas virtudes devia representar para o pai uma forma de compensação pelo que faltava a ele de brilho e sapiência, pelos negócios escusos e pelas negociatas). Se a filha era virtuosa, todos os recursos materiais fartos de que ela dispunha para aperfeiçoar o conhecimento advinham dele. Graças a ele e ao altíssimo padrão de vida proporcionado à filha, ela tinha as condições mais que necessárias para desenvolver todas as suas potencialidades latentes.
Gessi também admirava a filha estudiosa, a quem não era preciso impor castigos por nada, mas tinha uma certa implicância com tamanha mania pela erudição, pelo conhecimento exacerbado, pela pesquisa, com aquilo de querer saber demais, os detalhes, as minúcias: uma menina, uma moça, uma mulher não precisam saber tanto! Assim, convenhamos, não convém, extrapola!
Alfredinho nunca quis ir a fundo nas coisas, andando sempre nas beiras, nas bordas. A vida lhe fora aparentemente leve e não lhe interessavam as razões da existência, o sentido de se estar aqui no mundo, o Big Bang, o que disse Darwin sobre nós, o que professa o criacionismo, o candomblé, a umbanda, a macumba, o budismo, a cabala, a vida após a morte conforme Chico Xavier e Alan Kardec, ou o nada depois de tudo, o porquê de Deus (caso haja) se manter solenemente mudo e ausente mesmo nas horas mais repugnantes, covardes e trágicas. Ao que se sabe, seguia a manada e gostava.
Cacilda não dava atenção ao movimento vertiginoso da massa, não seguia o rebanho das vacas, dava de ombros para os bois e, justamente por isso, Alfredinho dizia que a irmã era fresca, obsessiva e chata, chatíssima!
A quadrilha era grande, isso disse primeiro a repórter, e dessa noite para as outras o doutor Bocaiúva certamente não teve mais paz. Segundo a arrumadeira Gilda, a Gi, a coisa piorou e muito para os patrões quando, dias depois, deram a relação completa na televisão dos outros nomes dos suspeitos envolvidos no caso do roubo e se tornou público que no meio deles todos estava Frederico de Salmoura Bocaiúva Pinto, o doutor Bocaiúva, de quem até então poucos sabiam que era Pinto, mas era.
Doutor Bocaiúva, normalmente controlado, passou a demonstrar impaciência e irritação e chegou a ser ríspido e rude demais sem motivo para tanto com o jardineiro Tomás de Aquino, o Tô, e a cozinheira Mariinha do Céu, sem falar das vezes em que soltou palavrões em altos brados, pouco se lhe dando se seria ouvido lá fora e aquilo (os altíssimos brados na casa!) classificado e identificado como consequência imediata do nervosismo causado pelo vazamento dos nomes mancomunados com o ministro ladrão.
O quanto foi unicamente responsabilidade de Cacilda, o quanto foi o acúmulo — a sucessão de fatos desabonadores espalhados pelas TVs, pela internet e pelas rádios, a soma de todos os episódios macabros e constrangedores expostos minando a saúde — não se poderá afirmar sem que se venha a cair em julgamento impreciso.
Que o doutor Bocaiúva morreu na ambulância, minutinhos antes de chegar ao hospital, isso é fato sabido, concreto. O resto será sempre dúvida por mais que Gessi e Alfredinho acusem Cacilda.
A primeira vez que Cacilda causou mal-estar na família, jovem dedicadíssima aos estudos e às normas, foi quando Alfredinho fez chegar aos ouvidos dos pais que a irmã namorava escondido. Até então namorado nenhum ao lado e quando enfim ele veio era um tal que provavelmente beijava beijo de língua na boca dos homens. Não se entendia por que namorar um moço de gestos quase femininos, adamados, alvo de bullying feroz na escola (disso informou Alfredinho, com fel e sarcasmo), virilidade aquém, silencioso, monossilábico e impróprio para moças. Queria ela o que andando de baixo para cima com um mocinho gay que dá pinta, andrógino, dúbio?
Cacilda demorou a levar Viriato para dentro de casa (sabendo o que Alfredinho dizia do namorado aos pais, protelou o momento em que a mãe e o pai o vissem).
Gessi viu e não gostou do que viu espantada. Interpelou a filha. Quis saber o motivo, a razão, o porquê de uma escolha totalmente infeliz, descabida. Por que uma moça excelente aluna, estudiosa, inteligente, bem comportada até demais, decide de uma hora para outra fazer meleca feia na vida e se envolve com um veado?
O namoro causou perplexidade igualmente no doutor Bocaiúva, que se manteve, todavia, neutro na ocasião, entretido demais, à época, ao que parece, com seus negócios escusos.
Cacilda resistiu firme e calada sem dar resposta nenhuma a todas as censuras e críticas vindas de dentro e de fora de casa (sua introspecção se mantinha intacta também diante das admoestações e dos escárnios dos outros que riam muito ao vê-los).
Entre o primeiro namorado, com o qual prosseguiu o relacionamento (à revelia da família e do deboche acintoso da massa) por alguns poucos meses que para Gessi foram tantos, e o segundo houve o interregno, o alento, a boa notícia, o sucesso estrondoso, a alegria. Tudo parecia ter voltado nos eixos, Cacilda novamente correspondendo, quinta colocada na lista dos aprovados no vestibular de medicina. O doutor Bocaiúva, em particular, como atesta a arrumadeira Gi, a Gilda, não cabia em si de contentamento e orgulho, um bom humor de pai cuja filha não decepciona nem erra.
O segundo ponto nevrálgico (Cacilda a provocar muito desconforto na família) viria anos depois com Renê, o estudante negro de sociologia da USP de cabelo black.
Mariinha do Céu (a Céu, cozinheira negra de cabelo chapinha) previu a encrenca quando flagrou Cacilda conversando com Renê na sala, cedinho, numa manhã de sábado em que tudo dava a entender que o rapaz, aproveitando uma viagem do irmão e dos pais de Cacilda, tinha dormido na casa. Não era da sua conta isso de os dois jovens sozinhos no quarto fazendo sexo quando os pais estavam longe. Mas sabia o que viria pela frente se aquilo fosse o que ela imaginava que era.
Dessa vez Alfredinho não soube de tudo primeiro. Surpreendeu-se depois da mãe e do pai, o namoro acontecendo por meses sem que ninguém tivesse ideia de que um rapaz negro de cabelo black andava beijando Cacilda na boca.
O jardineiro Tomás de Aquino, o Tô, foi o que viu na frente, Cacilda entrando pelo portão de mãos dadas com o moço, a primeira visita oficial muito tempo depois do dia em que Cacilda, aproveitando a casa vazia, levou Renê para trepar na cama king size da mãe e do pai).
Provocação, confronto, era isso? Então era a guerra, o ataque, a cizânia, a discórdia, a esculhambação geral da família? Foi o que disse Gessi para a filha pouco depois de Renê dar as costas e sair, tendo estado na casa a comer queijo provolone à vontade e beber espumante.
Que porra é essa?, continuou a mãe, alarmada, possessa, fora de si (diante do rapaz controlara-se, a fúria ainda todinha por vir). O doutor Bocaiúva se conteve, procurou não se exaltar como a esposa, embora tenha dito à filha em tom controlado, mas incisivo, que não havia sentido, não, não havia sentido nenhum Cacilda namorar um rapaz negro de cabelo black. O que há com você, o que há?, gritou a mãe, numa altura que se ouvia da cozinha: Primeiro um frutinha, uma bicha! Agora um negro. Um negrão! Uma filha minha namorando um negrão feio de cabelo black!
Gilda teve ímpetos de começar a quebrar as louças, os copos, as taças, sujar as paredes com o molho preparado por Céu, ir até a sala e perder todo o controle que havia, encharcar de vinho o tapete e os quadros de bandeirinhas do Volpi e os da Anita Malfati e dizer para a patroa na cara: Mulherzinha branca desprezível e escrota de merda é a senhora! De merda, entendeu, dona Gê, ah, dona Gê do cacete, do cu?, indignadíssima que estava com toda falta de respeito e consideração de Gessi, nem aí se se podia ouvir muito bem da cozinha a ofensa que era dirigida a Renê (já então virando a esquina na rua, a salvo dos gritos) e a Tomás e a Céu e a ela (Gi), todos igualmente negros como o namoradinho da USP de Cacilda.
Houve o ímpeto em Gi de dizer barbaridades, mas não houve a ação em si. Cada coisa continuou no seu devido lugar, o emprego preservado, Céu a pôr água gelada no fogo, a convencer Gi de que quem se fodia no caso era ela (Gi) se ousasse dar tratos à bola e soltar a língua faladora na sala em que Gê continuava a dizer: Se tem lá cabimento uma merda fedida dessa! Uma quase médica formada pela USP, pela USP! , de namoro com um estudantezinho negro qualquer de cabelo pixaim grande!
O doutor Bocaiúva deu toda razão à mulher, achou por demais aviltante e imprópria a escolha da filha, concordou que não convinha trazê-lo nunca mais à casa, deixou claro que era uma decepção considerável ver Cacilda, sempre bem-comportada e estudiosa, com um rapaz daquele tipo, mas não ergueu demais a voz, como se, ao contrário de Gessi, se preocupasse em não ser ouvido na cozinha.
Cacilda continuou a namorar Renê em segredo por muitos meses (segundo atesta a sempre bem informada Gi). Ele nunca mais pôs os pés na casa na presença dos pais e do irmão dela (se aproveitaram outra eventual ausência dos três e tiveram momentos íntimos a dois na cama king size, disso nem Mariinha do Céu soube).
Alfredinho, o galã vagabundo bombado, formado a muito custo na GV, ao que se saiba, nunca viu a cara de Renê, mas ironizou o quanto pôde a irmã por namorar um crioulão da zona leste que estudava na USP. Ela, tal qual fizera nos meses em que esteve lado a lado com o jovem homossexual Viriato, usou pouquíssimas palavras em sua própria defesa, limitando-se a ignorar e desprezar os ataques racistas do gigolô e a não desistir facilmente do que queria para si.
Estavam então por vir à tona logo mais à frente, quase simultaneamente, os dois fatos desestabilizadores, os dois acontecimentos que mexeriam com os brios, com as reputações, com o conceito de moralidade, de correção, de conveniência social (o constrangimento com a descoberta da barafunda financeira no ministério durou semanas, ninguém morreu no ato ao ser exposto o crime, continuou-se a comer e beber, a foder, a dormir e a acordar, a viver, enfim, ainda que talvez sob tensão e medo — o outro episódio, ao contrário, esse sim, teve reação física e psíquica imediata, instantânea, quase fulminante, e por isso Gessi culpará sempre Cacilda.
Se houve a morte e disso todos já sabem (os jornais disseram aos montes, as rádios, as televisões e a internet noticiaram largamente o fim abrupto de um dos mais notórios integrantes do bando ligado ao ministro ladrão), houve um fato a respeito do qual nada se saberia com detalhes não fosse Mariinha do Céu ter ouvido (sem querer, como ela sempre admite, sem querer, gente!).
Céu não prestou atenção no começo, quando Cacilda se pôs a falar e ela não podia supor que dali viria o que veio. Somente se deu conta que vinha coisa ruim quando o doutor Bocaiúva disse, alto e bom som, depois de tossir, engasgado de uísque: Como é que é? O que é que você disse? Eu não posso ter entendido direito, caralho!
Gessi entrou na conversa, dirigindo-se a Cacilda: Só te dando na cara! Na cara! Se isso é coisa quê!
— O que significa essa merda, Cacilda (doutor Bocaiúva)?
— Quer ser diferente, fazer o que as outras não fazem, se recusam, terminantemente se negam (Gessi).
— O que é que te deu, minha filha? É inadmissível que você, Cacilda (doutor Bocaiúva)!
— Completamente! Essa ideia a gente tira já, já da cabeça da doida, arranca, amassa, tritura e pisa. Moça não é para isso, não sabe, maluca (Gessi)?!
— É para quê, por acaso (Cacilda)?
— Foi para dar nisso, nesse cocô catinguento, é que quis estudar tanto, grudadinha nos livros feito louca, enfurnada, reclusa, quase uma irmã carmelita?! Nem de festas queria saber, arredia, isolada do mundo, sempre lendo, sempre, sempre. Só namorou homem errado (Gessi).
— Eu te proíbo, entendeu, filha (doutor Bocaiúva, dirigindo-se a Cacilda)?
— Eu decidi já faz tempo, papai. Não é de hoje, faz anos que eu sei (Cacilda).
— Sabe o que da vida você sempre só, nenhuma amiga que preste, dois namorados que é bom nem lembrar?!
— É bobagem continuar a falar nesse tom comigo. É coisa decidida. Eu não mudo (Cacilda).
— Coisa decidida uma ova! Como é que não muda? Muda sim, é claro que muda. Eu não aceito esse troço, não aceito, compreendeu (doutor Bocaiúva)?
— Não muda! Atrevida você! Dou-lhe na cara, dou-lhe (Gessi)!
— O que eu tinha a dizer eu já disse. Não há mais nada (Cacilda).
— Isso nem a filha da Linda que nunca teve cabeça. Nem ela. Nem a filha puta da Linda (Gessi).
— Quer me punir, me humilhar, me atingir, me foder de uma vez, me atolar na bosta, no esterco fedorento em que essa imprensa sensacionalista marrom me jogou e da qual eu hei de sair limpo, honrado, orgulhoso, orgulhosíssimo de mim (doutor Bocaiúva)? Eu te proíbo, entendeu? Sou seu pai e proíbo definitivamente essa merda (doutor Bocaiúva)!
— Não, não proíbe, não (Cacilda)!
— Vê lá como fala com ele. Olha o tom, atrevida! Dobra essa língua para falar com seu pai (Gessi)!
— Pediatria que é bom (doutor Bocaiúva)…
— Cardiologia que fosse (Gessi).
— Dermatologia, sim, porra (doutor Bocaiúva)!
— Ortopedia (Gessi)!
— Até geriatria, vá lá, se compreende!
— Otorrinolaringologia não presta?
Céu, que deveria estar na cozinha preparando o jantar e não se sabe por que não estava, ficou de olho, ouvido alerta, tão alerta que, um pouquinho antes de o doutor Bocaiúva começar a ter espasmos, a tremer as mãos, a suar em excesso no rosto e no corpo, a babar e a ficar cada vez mais com a cor alva da neve e do giz, a não ser mais capaz de proferir palavras conexas, a gemer e a fazer Gessi gritar como berra desenfreado o coitado do porco quando se vê diante da morte assassina, pôde ainda ouvir as últimas palavras compreensíveis (e destemperadas!) ditas por ele, as palavras chulas que Céu, como faz questão de afirmar categoricamente a cozinheira, preferiria nunca tivessem lhe entrado um dia pelo ouvido e que a muito custo, somente pelo bem da verdade, repete para nós:
— Enfiar o dedo no cu de homem, caralho, isso é coisa?! De pinto sujo doente de homem quem cuida é mulher, diz para mim? Esse tanto sem fim que há por aí de pau mole, esse tanto de homem brocha atrás de cura e remédio para voltar a meter é agora tarefa da qual moça se responsabilize e se ocupe?
6 Comentários
myrian de magalhães furlan
dezembro 28, 2014 @ 19:35
Mario,por acaso voce é filho da ZeZa?????Se for,eu sou filha do tio Zeze irmão de tia Dira.Por favor envie=me uma resposta….Obrigado.
Maurício Mellone
dezembro 29, 2014 @ 10:17
Myrian,
sou amigo do Mario, desde o tempo da PUC-SP, em que fizemos
jornalismo. Tenho a honra de publicar os contos do Mario
aqui no meu blog.
Vou repassar o seu e-mail para ele.
O endereço eletrônico dele é:
mariogarrone@estadao.com.br
tente contatá-lo.
E terei o maior prazer em receber sua visita por aqui;
abr
Maurício
Marcos Biazi
dezembro 24, 2014 @ 11:10
Leitura deliciosa, me prendeu até o final. Vou aguardar o livro de Mario Garrone.
Maurício Mellone
dezembro 26, 2014 @ 15:05
Marcos,
o Mario é um escritor que realmente
prende o leitor, desde a linha inicial
(desta vez, desde o título!)
Obrigado pela visita e
que em 2015 possamos estar sempre juntos,
aqui e na vida real!
bjs
Dinah
dezembro 23, 2014 @ 18:53
Maurício,
Mais uma pérola essa crônica do Mário!
E que ótima notícia essa de reunir as crônicas num livro!
Acho que você foi encorajando mais essa publicação ao postar as histórias no blog, parabéns!
Vamos torcer para que esse livro chegue logo!
bj,
Dinah
Maurício Mellone
dezembro 26, 2014 @ 15:06
Dinah,
nosso amigo é um excelente escritor
e se o Favo pode dar uma força,
fico só na torcida para q o ‘último’ conto
chegue logo e daí o livro reunindo
todos os contos aqui publicados e outros mais!
bjs e obrigado pela presença constante!