De Maurício Mellone em maio 17, 2013
Autor dos romances O Homem Infeliz e Pequeno Relato sobre o Caos, Mario Garrone vem me dando a honra de publicar aqui no Favo seus contos inéditos. Com estilo já característico de deixar o leitor sempre atento, pois com sutileza omite dados e informações da trama narrada, o autor com A Única Versão da Coisa surpreende mais uma vez, com uma linguagem recheada de mistério e poesia. Veja abaixo como o uso de aliteração (repetição de fonemas parecidos) deixa sua prosa poética e com a pitada de mistério:
“Nunca se saberá ao certo o que houve, se só Ceci, se mais ninguém, se só ela, se a versão oficial nem sequer há, uma história torta cujo desfecho Ceci não conta.”
Outro trecho poético que aguça o leitor a imaginar o desfecho ou o que realmente aconteceu naquela casa em que um casal com três filhas adota outra garotinha do asilo:
“Se tudo era só encargo, obrigação horrível, imposição, martírio, prazer nenhum, Domingas dirá a quem? Talvez nem sendo encontrada dormindo na calçada conte o que Ceci esconde.”
Mario, mais uma vez obrigado pela confiança em publicar sua obra aqui no blog. Em breve teremos farto material para um livro reunindo todos estes contos interessantíssimos! Aos meus leitores/seguidores, uma ótima diversão. Se puderem, deixem comentários sobre o conto e o Favo.
A Única Versão da Coisa
Se ela não tivesse tido a ideia infeliz de escolher a dedo uma menina- zinha branca que já não era bebê e falava e andava e tinha um nome que ela nunca poria numa filha. Se tivesse, como os outros, pensado só em si e na própria família e deixado a menina com as freiras e com as crianças negras que ninguém nunca leva para casa. Ah, se não tivesse agido em prol da infância desamparada e procurado ser boa para quem tinha nada e tornar-se mãe de quem não era sua filha. Ser boa, afinal, serve para que neste mundo em que não se reconhece mais o bem, a virtude, o desprendimento, todo o esforço insano de dar carinho e afeto a quem foi abandonado no lixo fedido cheio de rato?
Isso deve ter dito Ceci para si em algum momento extremamente nervoso logo depois do que houve. Dito para si ou para um padre, um pastor, o bispo-mor da Igreja da Fé Cristã Cosmopolita.
Há quem garanta que a Ceci, desde o comecinho de tudo, nunca amou a menina. O que havia não era amor, imagine, não era. E se era, se existia algum sentimento, se a menina era realmente acolhida na casa, se era apenas uma das cinco, uma irmã e filha como as outras quatro, esse amor, caso fosse, era maldito e doente. Um amor de quem tenta purgar seus pecados criando uma criança nascida de outra, exibicionismo de bondade para calar a boca de quem a julgasse má.
Não, não se entendeu quando a Ceci, já com três filhas, deu de querer adotar, se ela ainda podia parir, como veio a parir dois anos depois de Domingas ser levada do asilo. Ainda que ela estivesse vivendo uma fase acentuadamente pia e cristã, três crianças já davam trabalho demais, três meninas mimadas querendo todo dia uma coisa, a boneca sexy com silicone no seio, a sandalinha de plástico multicolor, o vestidinho transparente da estrelinha anã. Ninguém entendeu, mas estava na cara que a religião foi a causa de a Ceci percorrer orfanatos e convencer o marido cético de que era preciso ajudar o próximo, contribuir de uma forma ou de outra, não pensar só em si. O excesso de fé, ou a falta, a obsessão, a influência dos cultos, o vazio que ela tentava preencher, o medo de não se ser nada sem Deus, a necessidade desesperada de crer que haveria recompensa pela bondade e punição pelo crime, tudo deve ter colaborado para que a Ceci não sossegasse enquanto não encontrasse a menina branca de cabelo liso cuja adoção a fizesse se sentir boa e mostrasse a todos que ela era capaz sim de amar como filha uma garota enjeitada.
Dependesse do doutor Fenício, o marido ausente e relapso, coubesse a ele decidir, menina abandonada nenhuma, ainda mais já falando e andando e enchendo a casa de voz irritante e pergunta. Se Domingas veio, veio por Ceci ter se imposto um gesto generoso e pelo doutor Fenício, pai negligen-tíssimo, ter sido, mais uma vez, omisso.
Nunca se saberá ao certo o que houve, se só Ceci, se mais ninguém, se só ela, se a versão oficial nem sequer há, uma história torta cujo desfecho Ceci não conta.
O que vazou, vazou pela cozinha, por onde tinha de vazar. Pelas duas empregadas que ouviram as vozes alteradas, choros e que atestam que a Domingas não era amada pela Ceci como as outras quatro, ainda que as meninas todas se dessem realmente como irmãs. Dália, a cozinheira forno e fogão, e Lídia, a da faxina, dizem mais. Que tudo deve ser pior do que parece, melhor nem querer saber direito até que ponto a coisa toda vai.
O nome inteiro só na escola, quando o professor chamava para marcar presença. Na casa da qual Domingas passou a fazer parte, que ninguém se atrevesse. Dô daqui, Dô dali, Domingas nunca! Foi matriculada no mesmo colégio das outras três e só era obrigada a fazer o que filha faz, os mesmos direitos e deveres. Quanto a isso, ninguém discute.
A timidez que era pouca na infância acentuou-se com a aparição dos seios e a transformação geral do corpo. Ser quase uma mulher com formas a inibia. Talvez a deixassem insegura as curvas repentinas dos quadris, a bunda saliente, as coxas grossas. Provavelmente não sabia o que fazer com toda a beleza que a expunha quando tudo o que queria era não ser vista.
Vendo Domingas sem a devida desenvoltura natural em uma adoles- cente cujo corpo é belo, podia se pensar em conflitos da alma. Seria fácil supor que, não sendo alegre, a entristecesse não saber da mãe, da família pobre, da origem humilde, da referência mínima e única possível a todos nós que, nada sabendo do todo, ao menos temos o conhecimento, ou julgamos ter, do homem de quem saiu o sêmen, do indivíduo cujo orgasmo específico daquele dia nos fez vir ao mundo e ser o que somos desde a hora em que nascemos da mãe que talvez não tenha tido prazer nenhum com aquilo. Conflito certamente havia, mas o olhar triste trazia mais dor do que a de ignorar a própria procedência.
Dália e Lídia, sem terem visto nada, ouviram bem. Porque ver que é bom ninguém viu, só Ceci, e Ceci não dirá, ocultará para sempre. Continu-ará a dizer, se necessário, o que disse de vago e escorregadio a uns e o que a ninguém convence, mas, vá lá, Ceci fala o que lhe cabe, que a ingratidão se alastra e toma conta, que o mundo está sendo dominado por quem não tem cabeça, tudo decai e afunda e que sem Deus não dá, o abismo atrai.
Puta ordinária foi o que Dália ouviu primeiro. Lídia é categórica ao afirmar ter ouvido puta do esgoto, vagabunda da zona, biscatinha de rua. Rameira dos infernos quem ouviu nitidamente foi Dália ao abrir a porta da cozinha e tentar entender o que estava acontecendo com Ceci, uma gritaria danada vinda de uma única boca.
Se tudo era só encargo, obrigação horrível, imposição, martírio, prazer nenhum, Domingas dirá a quem? Talvez nem sendo encontrada dormindo na calçada conte o que Ceci esconde.
A casa continua em pé, a vida não deixou de andar para a frente, aparentemente tudo segue seu curso, um prato a menos na mesa, as quatro filhas, sim, mais amuadinhas indo ao colégio, os olhos de quem chorou, vai saber que dor, que mágoa, que culpa.
Lídia não perguntou nada a ninguém na casa sobre repentinamente não haver mais Domingas na mesa, no quarto, a cama nunca mais desfeita na manhã seguinte, um sumiço, um desaparecimento. Dália tampouco.
Como que se o que as duas tinham ouvido já desse.
Sem que ninguém visse, sem que Ceci soubesse (se é que Ceci não sabia da coisa e deixava, e, se sabia e deixava seguir, por que só naquela tarde a voz insolentemente aguda?), sem que Ceci flagrasse, aquilo tudo acontecendo desde quando? Se encontrada a perambular sozinha por aí carregando a mala, Domingas abriria a alma, revelaria o crime? Porque o crime houve, atestam Dália e Lídia, sem terem nunca notado antes indícios mínimos do que fosse. Diria Domingas que não só ela, que também as outras, que ao menos mais uma, que todas, cada hora umazinha à mercê?
Dália não acredita que tão somente ela, que mais nenhuma, que a única. Quando há isso na casa, a tendência é grande. O homem não se contenta, o pai usa da força, faz questão, quer, não abre mão, e ai daquela que não cede, que se enoja, que por ventura se recusa e grita enquanto ele lhe toca minuciosamente as partes e pede, exige!, que a filha lhe segure o troço duro e lhe ponha a língua.
Mario Garrone
4 Comentários
deborah
maio 18, 2013 @ 16:27
Um conto perturbador, pelo que diz e pelo que deixa de dizer. Me chamou atenção desde o início a descrição da mãe piedosa e perversa, o tom doentio da casa inteira, até dos brinquedos. Mário, seu conto me produziu muita tristeza e ao mesmo tempo uma grande admiração pela sua escrita certeira e a sua escolha pela contenção, pelo drama seco. Ninguém passa incólume por essa leitura. (Me lembrei um pouco da Crônica da Casa Assassinada, do Lúcio Cardoso, que li por indicação da Leusa e também porque ele era o escritor querido da Clarice Lispector. e me perturbou do começo ao fim).Parabéns à você e ao Maurício, por publicar sua obra. Um grande abraço para vocês dois.
Maurício Mellone
maio 20, 2013 @ 15:23
Deborah,
que bom q vc ficou tocada com o conto do Mario.
‘ninguém passa incólume por essa leitura’, vc tem toda a razão!
Tenho certeza q o Mario vai adorar ler seu comentário.
bjs e volte semrpe!
Dinah Sales de Olive
maio 17, 2013 @ 19:07
Maurício,
Maravilha esse novo conto do Mario Garrone!
Nesse jogo de esconde e quase conta (que a gente vai montando como num quebra-cabeça), bem característico do estilo dele, adorei!
Que bom que o autor tem o Favo do Mellone para mostrar seu talento de contador.
E bom para os leitores que apreciam uma história bem contada!
bjs,
Dinah
Maurício Mellone
maio 20, 2013 @ 15:31
Dinah,
este jogo de esconde-esconde do conto do Mario é fabuloso, prende a
a atenção da primeira à última linha!
Obrigado pelo elogio; vc, que tb já publicou no Favo, sabe q estou
sempre à disposição de mostrar o belo aos leitores! Sinta-se à vontade
para enviar, sempre que quiser, suas inteligentes e cativantes palavras!
bjs