Conto: A mãe, a filha gigante e o assassino de Mario Garrone, foto 1

A mãe, a filha gigante e o assassino, conto inovador de Mario Garrone

De em agosto 23, 2014

Conto: A mãe, a filha gigante e o assassino de Mario Garrone, foto 1

O jornalista e escritor Mario Garrone, além dos dois livros já publicados e dos contos veiculados aqui no Favo, já escreveu peças teatrais e participou de oficinas do CPT/SESC, dirigidas por Antunes Filho. No conto A mãe, a filha gigante e o assassino, que vocês lerão a seguir, o autor retoma sua técnica com diálogos, só que de maneira inusitada e criativa:

Os diálogos estão em texto corrido. Usei o recurso de letras maiúsculas a cada vez em que a fala passa a ser a de outro personagem”, explica Garrone.

Preste muita atenção para identificar os quatro personagens (Dona Aurora, Dor, Celeste e Jó) e tenha certeza, você vai se encantar com esta tocante história.

 

 

A mãe, a filha gigante e o assassino

ESTA de agora me espanta, sim, não é a de antes, a que eu gostava que fosse. NEM a de antes nem a que eu sou. Ninguém me conhece. Não sabem nada de mim. EU sabia quando você era outra, Dor. DOR! Deviam proibir no cartório, deviam prender a mãe que tentasse. ISSO de novo? São horas? Culpasse o seu pai quando vivo, não eu! Ideia dele, não minha, isso é de conhecimento geral. Se é preciso ainda culpar alguém nessa altura da vida, culpe seu pai lá no inferno. SE a mulher não aceita, impede o marido de pôr. EU convalescendo na cama, quem é que não sabe? SE a mulher não quer e o marido ainda assim insiste e registra, a mulher se recusa e não chama. UM nome para o seu pai e outro para mim?! Tinha então cabimento dois nomes e uma filha?! Eu quase morta na cama. Seu pai fez o que lhe deu na cabeça, isso não é novidade nenhuma. Só eu sei o custo de te parir assim grandalhona, robusta. GRANDALHONA e feia. FEIA, não, eu não disse. FEIA e gigante. Mas tem homem que gosta. Gosta e está a fim. ISSO é modo, Dor? TEM homem que gosta, sente tesão. Duvida? Tem homem para tudo, eu descobri tarde. Que quer até eu! O QUE te deu na cabeça? Você nunca ligou para homem, nunca pensou em homem. AH, é, não pensei? Enxerga meus pensamentos, enxerga? Lia dentro da minha cabeça? AGORA que tem cinquenta e dois e está velha? Você não é esta! EU sou quem? Dentro de mim é a guerra. Dentro e fora de mim. A guerra é toda hora, não passa um dia sem que tenha fuzil, espingarda, canhão, helicóptero derrubando bomba em mim, um tiroteio sem fim na cabeça. É SÓ o doutor Gusmão acertar o remédio de novo e tudo volta nos eixos. O DOUTOR Gusmão que se foda! DOR! ELE que nem venha com coisa. A mão dele sua, encharca, por um muito pouco não pinga, a saliva fica ali no cantinho da boca, me dá um nojo tremendo. NOJO do doutor Gusmão?! AQUELA cara de boi que pensa que sabe de mim o que nem Deus tem ideia. ELE estudou para saber, se aprimorou no estrangeiro! QUE ponha todo estudo estrangeiro no cu, que enfie bem lá no fundo com o dedo.

Conto: Mario Garrone, foto 2

O escritor e jornalista Mario Garrone

AH, se não for o doutor Gusmão porque, ora veja se pode, ele sua demais nas mãos, que seja outro qualquer, mas que seja um, o remédio certo vai te fazer voltar a ser a mesma, a que me acompanha, a que até outro dia era de casa para a loja, da loja para casa. ME quer a de antes, a que lhe convinha, a pacífica, a mansa. A QUE tinha juízo, a que não me dava desgosto. A QUE não vivia para si, a que, para os outros, não tinha desejo nem tara. A QUE não me deixava sozinha. SOZINHA eu, sozinha a senhora, sozinho é o mundo. Viver é ser só, dona Aurora.  QUANDO você voltava para casa depois da loja eu não era. Havia a espera e então você chegava, eu não tinha medo, não tinha essa sensação de que tudo se afunda no lodo. Agora não sei de mais nada. Você sai da loja e não vem como vinha, eu com a sopa pronta e meu coração aflito na boca. A QUE eu fui nunca mais. Uma hora a gente não está mais a fim.  POR onde você anda quando não chega?  Ah, filhinha! NÃO quero mais esse grude, essa cola, eu estou noutra. QUE outra, Deus meu? Se o doutor Gusmão te dá nojo, olha só que coisa, há outros, um médico bom te coloca de novo no prumo. EU não entro mais no buraco, entendeu? O buraco é estreito e eu estou fora, nem vem. Eu ia querer para sempre esse vão? VOCÊ sai da loja e faz o que por aí? Fica andando com quem que não volta? Eu estou velha, Dor! EU também achava que estava caída na lona. Que ninguém nunca olharia para mim, eu a que só existia para me dizerem que eu sou feia e grande, horrorosa. VOCÊ não é feia! Eu nunca disse a ninguém que fosse. FEIA e gigante e sozinha no mundo. EU não conto? Te faltei quando na vida? EU não era ninguém, a que nasceu fadada a não ser, aquela para quem não se espera que nada aconteça, a virgem madura, intacta moça, intacta velha, a boca sempre sem o beijo, a língua inteira só para a comida e a água, órfã eterna da saliva de outra boca que quisesse a minha. QUE tipo de gente é essa com quem você anda, você que não tem amigos, que nunca andou com ninguém? Eu marco a consulta, você engole o remédio e volta a assistir às novelas comigo, eu aposto que volta. Não há nada no mundo que possa te dar mais do que eu dei. QUER que eu não viva, que eu não veja mais o que eu vi, que eu esqueça! Quer que eu apague! ESPERA eu morrer, filha, espera. Ao menos espera que eu morra.

 

Conto: A mãe, a filha gigante e o assassino de Mario Garrone, foto 3

 

DEUS parece que se vinga, não tem piedade nenhuma fazendo nascer bebês doentes, disformes, condenados ao sofrimento e ao martírio. AGORA blasfema? É INJUSTO ou não é? Você toda bela e ela o que é. Não tem pena? CULPA minha ela ter o tamanho e a cara? TODOS os namorados só para você. Todos! HOMEM vai querer mulher feia? E se não bastasse ser feia, simplória, atrasada. O que eu passei de vergonha sendo a irmã da bobona. Pensa que foi fácil para mim ser a irmã, pensa? DEU agora para ser agressiva comigo. COM a idade piora, já falei para a senhora. E se piora, já sabe! A senhora não tem mais idade. A cabeça dela nunca foi boa. Se degringola, quem pode? CISMOU com o doutor Gusmão. Que ele sua nas mãos, que o sovaco transpira e encharca a camisa, que no canto da boca armazena demais a saliva, que o hálito fede, que não sabe de nada, imagina! A SENHORA não pode dar conta, entendeu? UM irmão, se houvesse, talvez fosse atrás da irmã e desse um basta na coisa. E se o seu marido? NEM vem. EU pensei que se ele. ELE não vai, ora essa. Não é coisa para ele. Vigiar a cunhada coroa e maluca depois do trabalho! DOR não é maluca, Celeste! OU ela vai ao médico e se trata ou o doutor Gusmão vem aqui, dá uma injeção na bunda e interna. VOCÊ não gosta da Dor, não gosta! Uma irmã que tem raiva da outra! Deus é cruel dando tudo a uma e negando até migalhas à outra. COITADINHA da Dor! Vai, continua a olhar só para ela, continua, eu prefiro. Ser protegida demais pela mãe atrofia, a pessoa não anda com as pernas. QUE eu então não cuidasse da Dor, que não amasse, é isso, Celeste? Que me negasse e recusasse como Deus recusou? DEIXA Deus fora disso, mamãe. ELE é parte. Responsabilidade de quem o tanto de infeliz vindo ao mundo para ser alvo das pedras lançadas pelos ímpios? ÍMPIA é a senhora falando coisas sujas de Deus. ELE determina, colabora. Sua irmã não nasceu como eu quis, não fui eu que lhe dei a feiúra e o tamanho avantajado com que ela agora perambula pelas ruas e se atrasa ou não volta.

Conto: A mãe, a filha gigante e o assassino de Mario Garone, foto 4

QUE eu não soubesse, não tivesse sabido. Não se conta, não se deve contar, você não devia, Jó. TODO dia eu tento não ser quem eu fui. NÃO fala mais nada, não é preciso falar mais nada para mim. CADA manhã em que eu acordo de mais um sono difícil, eu tento ser outro, um outro que se afaste daquele, que fique bem longe, nem lembre mais do que houve, um outro tão outro que o passado não tenha sido o que foi. TÃO outro que eu não precisava saber. Tão outro homem que eu não tinha nada de conhecer o Jó que já foi, que não é. POR mais que eu faça e me empenhe, o Jó que eu fui ainda está. Eu continuo a ser quem eu era. O Jó que eu sou não perdoa e assim o Jó de lá atrás volta e me lembra o que eu fiz. Eu precisava contar para você. NÃO contasse, não dissesse coisa nenhuma para mim, eu não queria saber do passado. ÀS vezes é preciso contar, mesmo que se corra o risco de ficar sozinho no mundo outra vez. NINGUÉM nunca diz tudo. QUANDO o segredo pesa demais, se você encontra a pessoa que poderia ouvir, que você acha que poderia ouvir, você conta, mesmo que isso te faça novamente perder. Como eu poderia continuar a me encontrar com você sem dizer nunca o que eu fiz, se o que eu fiz não desgruda, não desaparece de mim, se a prisão foi até outro dia? Houve algo sujo lá atrás, há um passado que eu carrego e escondo de todos. ESCONDESSE de mim! Tem coisas de mim que eu não falo. DUVIDO que tenha acontecido com você algo que se compare. Algo tão baixo e vergonhoso. Houve um crime. Eu apertei o gatilho e matei. Os corpos ficaram lá mortos. Eu fui capaz de matar, Dor. E depois que se mata um, matam dois, fica sempre o medo de não haver mais limite, a sensação de não haver mais nada que nos segure e impeça. A vida fica vazia e só o que resta é o esforço para vir a ser outro.

Conto: A mãe, a filha gigante e o assassino de Mario Garone, foto 5

ESCUTA bem uma coisa, Jó: esta aqui que eu sou na sua frente se fodeu dia a dia. Ah, as cicatrizes que eu tenho aos montes na alma! Mas eu não vou te contar a desgraça toda e o horror de ter passado o que eu passei

por eu ser o que eu era e sou. Não espere que eu te conte toda humilhação, todo deboche, o pão amassado e bolorento que eu comi, o tanto de coisa podre e estragada que me enfiaram na goela. O passado não prestou para você nem para mim. E você é somente este que eu vejo, o Jó arrependido que um dia quer ser bom, que um dia quer ser santo. O assassino eu não conheci, aquilo foi num tempo em que não havia nós dois aqui, eu sozinha levando porrada do mundo bem longe de onde estivesse você se metendo em encrenca. Nada disso que aconteceu quando você era moço me importa. Na verdade, eu sabia, Jó. É, eu sabia que se me aparecesse um, unzinho que fosse. Eu sabia muito bem que se um dia viesse a haver um homem comigo, se um dia aparecesse um qualquer que me visse e quisesse, seria apenas aquele que tivesse caído no fosso, vivido a desventura, conhecido a ruína, a solidão desmedida e o martírio. Ninguém mais senão esse um que tivesse despencado no abismo e voltado esfolado e aos pedaços do inferno.

Mario Garrone

 

Fotos: imagens Google


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