De Maurício Mellone em agosto 9, 2013
O escritor e jornalista Mario Garrone, autor de Pequeno Relato sobre o Caos/Chiado Editora e O Homem Infeliz/Imago, como vem fazendo nos últimos anos, lança aqui no blog mais um de seus contos, A Mãe do Bandido. Com estilo e linguagem muito bem articulados, Garrone ambienta suas histórias nos bairros e periferias da grande São Paulo, com personagens típicos e enredos policiais envolventes. Desta vez não é diferente: assassinatos, estupros e mortes sempre envolvendo mocinhas virgens, que ocorrem em dois bairros distantes e distintos da capital. Só que além do crimes, o autor quer revelar o que se passa com a mãe do criminoso: há sinais desde o início para só no final o mistério ser desvendado. Leia com atenção e tente decifrar o enigma antes do final.
Mario, novamente muito obrigado pela confiança depositada aqui no Favo. Seu próximo livro pode muito bem ser lançado com os contos que estão sendo aqui publicados em primeira mão!
A Mãe do Bandido
Quando o delegado apareceu dizendo que estava tudo esclarecido, que os supostos estupradores assassinos que amedrontavam a Penha e a Vila Zatt eram um só e único tarado agindo quase simultaneamente em dois bairros distantes um do outro, muita gente desconfiou. Era difícil acreditar que um só desse conta, fosse capaz de estar em dois lugares destruindo com a vida dos outros sem a ajuda de um bando. Houve cisma de que fosse invenção da polícia, de que tivessem posto a culpa em um só para apaziguar os ânimos, dar tudo por terminado e ver diminuída a pressão dos pais e da sociedade que exigiam com urgência a captura de todos os bandidos.
A primeira reação foi essa. Mas se deu para duvidar, deu também alívio ver o delegado dando o caso por encerrado. Por- que, se fosse verdade o negócio de um só tarado, o problema estava resolvido para quem não tinha sido vítima do único homem e voltava-se a poder viver com um pouco de sossego.
Nem pai nem mãe tinham mais paz com as filhas à mercê de quem, não satisfeito de violentar mocinhas virgens, matava algumas, não todas, característica essa que contribuiu bastante para que se pensasse em muitos em ação, um só não tinha como, não havia método, cada caso era um caso diferente.
O delegado falou na tevê que era um. Um que estuprou e matou sete. O mesmo que, por razões desconhecidas, violentou ouras cinco sem morte e, caso não fosse descoberto pelas autoridades, seguiria transformando São Paulo no antro-mor da barbárie.
A insegurança estava em toda parte. Nem precisava ser noite. Ainda que à noite o medo aumentasse e as mulheres tivessem mais horror de sair. Despencou a frequência feminina noturna nos colégios estaduais da Vila Zatt e da Penha e quase só se viam rapazes nas classes. Até quando a intranquilidade, a desordem e o caos? Havia pressão permanente para que as autoridades agissem. As mães de Santana e do Tucuruvi organizaram passeata exigindo medidas urgentes e um basta no estado alarmante do crime. Em contrapartida, aquele deputado mal encarado que tinge e alisa o cabelo acaju apareceu no programa da tarde para dizer, em tom de ameaça, que é isso que dá concentração imunda de renda, que enquanto houver muito mais pobre do que rico no Brasil ninguém aqui está seguro nem escapa (embora roubo nenhum tenha havido no caso em questão).
Pensou-se em muitos e pensar em tantos apavorava. Quem controlaria uma gangue espalhando o horror pela Vila Mazzei, assassinos atacando no M B Mirim, na Baixada do Glicério e na Freguesia do Ó? Era sim muito mais alarmante e desesperador acreditar que fossem muitos ameaçando as jovens menores de ida- de, mas só se pensou assim em tantos porque era o lógico. Uma quadrilha ou então cada um por si barbarizando a esmo, um tal de um bandido copiando o outro, achando bonito matar depois de estuprar. Dois, vá lá, convenhamos. No mínimo! Que fossem dois, se admitia.
Era um e era aquele. Ninguém mais senão ele, garantiu o secretário de Segurança Pública. Um bandido frio e calculista, insensível à dor alheia, cínico, cafajeste e sem nenhum traço de emoção e de arrependimento, perigosíssimo rapaz de vinte anos, gigolô de mulheres da terceira idade.
Ordinário, mas bonito. Assim disseram as sobreviventes anônimas à polícia. Primeiro educadíssimo, depois agressivo e rude, um monstro com olhos azuis. Personalidade instável, bipolar, gentil no começo e outro quando a cara mudava de feição e os olhos azuis não eram mais segurança boa nenhuma de nada.
Houve missa na Sé com a presença de familiares das vítimas, uma multidão querendo ver e ser vista, políticos, feminis- tas, socialites cristãs, homens e crianças pelas escadas no meio dos mendigos e dos consumidores de crack, gente vendendo churrasquinho e salsicha.
Um único responsável por tudo. Só ele fazendo o diabo pelos bairros, afirmou irritado o delegado na frente dos jornalistas, um crápula sem alma, réu confesso, reconhecido pelas sobreviventes, parecia até ter orgulho pela carnificina e achar graça de confundir todo mundo que acreditava num bando do mal (o delegado com expressão tensa e irritado com tanta pergunta agres-siva que punha em xeque a possibilidade de um só, apontava para o rapaz de olhos azuis rente à parede que não demonstrava nenhum sentimento, ódio de mulher vadia que topa ir com um desconhecido para um canto escuro sem gente).
O ódio excitava, deixava o bandido de olhos azuis com te- são. Tesão e pau duro como os combatentes que estupram as mulheres do país inimigo tão logo a oportunidade apareça. Para essa gente sexo e amor não se bicam, quem ama não fode, sexo é sujo, nojento, avilta a pessoa e é coisa que se faz para ferir, emporcalhar, humilhar e deixar a vítima caída na lona.
Na lona a moça estuprada que não morreu e sua mãe e seu pai, a dor violenta dos pais cujas filhas foram seviciadas e mortas, enterros cheios de indignação e revolta, missa na Sé rezada pelo arcebispo, a catedral pequena para tanta gente, câmeras de tele- visão e gravadores nas mãos dos repórteres, um burburinho tremendo, uma impressão de que o arcebispo não ia conseguir chegar ao fim da sentença, um bafafá que atrapalhava muito a com- preensão da voz do padre nas caixas de som, um insistente pedido de alguns de silêncio e ordem, de respeito e consideração pelas famílias das mocinhas assassinadas pelo monstro sarado. Porque fora apenas um a cometer coisas medonhas, vociferou o secretário, um só a matar tantas, a atrair as jovens pela sua boa aparência, seu fino trato e pelo seu modo cortês inicial, um psicopata com um quê de modelo.
A comoção tomou conta. Uma jornalista de televisão chorou ao vivo entrevistando a mãe de uma vítima de quinze anos com festa de debutante agendada. Choraram a jornalista e a mãe. Chorou a apresentadora com botox que quase morreu fazendo lipo. Choraram tantos! Comentou-se muito na internet a dor das mães. Nessas horas pensa-se demais nas mães se as filhas morrem.
Já na mãe do bandido ninguém pensa. Não cabe. Mas todo bandido também tem mãe. Ou já teve. E essa mãe está só, isolada, em desespero, afundada na dor, na desgraça. O ódio que nasce pelo criminoso respinga na mãe e no pai, caso haja um pai reconhecido, identificado, um estrangeiro que veio da Alemanha para conhecer a mulher brasileira, flertou, namorou, engravidou a coitada, sumiu, não conheceu o filho e nunca mais deu as caras. Todos pensam que a mãe do bandido incentivou o delito, o pecado, o perjúrio, a ofensa, ensinou más ações, deu exemplos horríveis.
A mãe do bandido, aflitíssima, se esconde, se isola, tem pavor de ser descoberta, apontada. Corre a todo momento o risco iminente de ser linchada pelos vizinhos. Pela mãe do bandido nenhuma missa na Sé com o arcebispo, ninguém quer saber de pensar se bandido tem mãe e se a mãe precisa de ajuda, em sua solidão desmedida, tendo de continuar trabalhando e esconder dos colegas da firma que seu filho é o monstro contra o qual tanto se fala, aquele que um dia, na infância, deve ter sido a carinha da inocência e da graça e numa hora atroz e infeliz começou a se tornar aquele que viria a fazer o que fez e obrigar sua mãe a guardar um segredo horroroso sobre o mal nascido em casa, no colégio, na rua, mal do qual seu filho único é acusado, atiçando a ira da massa ignara ensandecida, pronta para, caso surja a primeira chance, reduzi-lo a uma poça imensa de sangue.
Vire-se a mãe do bandido do olho azul! Foda-se! Ninguém está mais só do que ela no seu descons
olo de ter parido e criado o violador de jovens virgens, o assassino sem alma de quem querem arrancar o coração e as vísceras.
Nem mulato nem negro. Branco! De ascendência alemã. Muita gente achou que não podia ser, que aquele lá não! O dele- gado, quase a ponto de sair de si com as perguntas, com falhas na voz, atestou que era um e esse um era o cara que ganhava dinheiro vendendo o corpo na sauna cheia de homem sem roupa.
O secretário de Segurança, pressionado a agir, a apresentar a solução que desse fim àquela sucessão descabida de estupros que mexia com os nervos das mulheres, indignava a todos e parecia totalmente fora de controle, o secretário, que estava a um passo de ser posto para fora do cargo, fez questão de apresentar ao vivo ao Brasil o criminoso rendido na Liberdade bebendo guaraná na garrafa.
Evidentemente era um. E branco. Negro não! Nem mulato.
Isso se disse. O prefeito afirmou que à polícia todos os méritos, todas as loas e salvas. O governador parabenizou o trabalho certeiro e eficaz do delegado. Os católicos da Penha saíram em procissão ecumênica e os religiosos da Vila Zatt rezaram na rua. Enquanto muitos ainda continuavam esperando uma brecha para linchar o monstro de sangue germânico matador de virgens
O envolvimento único de um, o estuprador assassino de comerciárias e estudantes, réu confesso de todas as barbaridades.
Psicanalistas e psicólogos, como de praxe, foram chamados a explicar com clareza o comportamento aterrador de um delinquente sem remorso, autor exclusivo do mal, se isso tem cura, como é que começa o desvio, se é possível à pessoa evitar vir a ser, quão responsável é o que estupra e mata se a ele parece apenas caber destruir. Psicopata se livra da sina, se salva do mal que lhe toma a cabeça, até onde vai a culpa, há ou não há livre arbítrio?
Prenderam o criminoso comendo um bauru na calçada, e o delegado na frente das câmeras respondia a todas as perguntas sobre a investigação que fez com que se chegasse à conclusão de que era unicamente aquele ser o responsável pelo sexo seguido de morte, embora nem sempre todas morressem.
Gangue nenhuma. Nenhuma quadrilha. Um único jovem atacando e destruindo famílias. Assim disseram os jornais e as revistas, todo noticiário da tevê e do rádio. Assim foi dito com total veemência pelas autoridades.
Até que uma jovem estudante nissei aparecesse sem vida e sem roupa no Pari. E em seguida uma recém-chegada imigrante boliviana currada e morta no Sumaré perto da MTV.
Como é que era só um, se morreu mais uma moça no Piqueri e outra, desfigurada, na divisa da Parada Inglesa? Quem mais além do bandido galã, quantos outros delinquentes à solta, afrontando as famílias, nem aí com ninguém, obrigando a sociedade a ser refém de quem estupra e na maioria das vezes também mata?
Só o crime organizado, a ralé social atolada no estrume ou também gente do mais alto escalão chafurdando no esgoto?
Era um, disse o secretário de Segurança que agora já não mais apita. E branco! De olhos azuis e barba por fazer. Indivíduo patológico, incapaz de sentir emoção, cidadão maléfico que nunca chora.
As moças continuaram a ser encontradas nuas no Paraíso e na Saúde, uma com vida, em estado de choque, outra morta. Duas irmãs gêmeas seviciadas e largadas na rua sem roupa no Largo da Concórdia. Fora as outras, tantas outras sobre as quais ainda nada se disse, mas se dirá.
Mortas as moças, todas menores, e morta também a mãe do bandido cujo pai alemão ele nunca viu nem em foto (as que ha- via a mãe rasgou ou queimou).
Quem se ocupa da mãe sozinha do traste, da que deu de comer e mamar, da que fazia mingau e pudim para o menino? Quem a seu lado em sua dor lancinante, em seu luto pelas mocinhas que o seu filho matou depois de estuprar? Ninguém lhe imagina quão grande é o tormento, o martírio.
Bandido tem mãe e ninguém pensa na mãe do bandido. É o costume. Pai que é bom nem sempre há. Não havia. E se havia só lá na Alemanha, em Berlim ou Munique. Veio um dia ver como é que é a mulher brasileira e zarpou, nunca mais deu nem pista.
Se a mãe não abandona a criança na rua e foge, o bandido tem mãe. Ele tinha. Nem mulata nem negra. Branca!
Há todo tipo de mãe cujo filho se afunda no crime. Não são todas iguais. Muitas resistem ao baque e levam adiante sua dor permanente e diária. Rezam, acordam cedo e visitam todos os domingos o filho encarcerado.
Há as que tentam a vida inteira, normalmente em vão, esquecer o filho. Nunca vão à prisão, não falam no assunto, se recusam, é tabu, procuram apagar da memória, não aceitam, não admitem que um destino sujo e cruel lhes tenha sido reservado. Umas chegam mesmo a duvidar de Deus.
Quem pela dor absurda da mulher que pariu o monstro? Compaixão nenhuma por ela, aquela para quem só restaram a decepção, o fracasso, a ruína e a queda.
Soube-se da morte dias depois de o secretário de Segurança perder o cargo e uma jovem ser encontrada agonizando no Jardim Maria Luísa. Quando o cheiro de podre saiu pelos vãos e invadiu as narinas. Quando a catinga empesteou todo o ar e o que se encontrou caído no chão foi um corpo de mulher em avançadíssimo estado de putrefação.
Sim, pois há ainda as mães de assassinos que sem mais a fazer neste mundo se trancam em casa, enfiam a cabeça no forno e se matam.
Mario Garrone
Fotos: imagens Google
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