De em setembro 16, 2011
Mais uma colaboração do escritor e jornalista Zedu Lima, o padrinho desse Favo do Mellone. Dessa vez, antes que ele mesmo publique de forma virtual ou no formato tradicional, o livro, Zedu nos presenteia com uma crônica deliciosa em que enumera as canções brasileiras que relatam como a mulher é mal tratada pelo homem que ama. Um texto criativo e instigante e de muito bom humor! Zedu, só podemos agradecer por mais essa preciosidade e pelo ineditismo, já que em breve suas crônicas chegarão aos ávidos leitores!
Vocês já repararam que na maioria das canções brasileiras a mulher brasileira encara numa boa ser mal tratada pelo homem a quem ama? Parece até que gosta. Mesmo se não chega a apanhar, adora ter um malandro pra chamar de seu. Principalmente nas canções mais antigas, as musas dos compositores estão sempre perdoando as traquinagens de seus companheiros. Sofrem, mas se comprazem com isso.
Se fosse relacionar todas as músicas que mostram essa situação, não haveria Delegacia da Mulher suficiente para tanto BO. Por isso, vou pegar, inicialmente, três exemplos, dois deles praticamente da mesma época e outro mais de vinte anos depois, o que demonstra que a inspiração para esse tema vem passando de geração para geração.
Em Camisa Amarela, composta por Ary Barroso em 1939, a moça encontra seu “pedaço” já chumbado, começando a cair na folia de carnaval, vestido com uma camisa amarela. Depois de tomar todas, ele volta para casa, mas só na quarta-feira de cinzas, ainda animadão. Cai na cama de sapato e tudo e, depois de roncar uma semana,
Despertou mal-humorado quis brigar comigo
Que perigo, mas eu não ligo
O meu pedaço me domina, me fascina, ele é o tal,
Por isso não o levo a mal
Pegou a camisa amarela
Botou fogo nela
Gosto dele assim
Passou a brincadeira ele pra mim!
Em 1942, os compositores Murilo Caldas e Marino Pinto também escolheram um cara chegado num Carnaval para o samba Teleco-teco. Depois de brincar a noite inteira sem a companheira, ele volta para casa de madrugada, batendo o tamborim. Mesmo com uma crise de bronquite, ela não deixa por menos e mete bronca:
Você não se dá o respeito
Assim desse jeito isso acaba mal
Você é um homem casado
Não tem o direito de fazer Carnaval.
E não é que o malandro se afina, ou finge se afinar:
Ele abaixou a cabeça
Deu uma desculpa e eu protestei
Mas não tem jeito, elas sempre caem na lábia deles:
Ele arranjou um jeitinho
Me fez um carinho
E eu perdoei
Não adiantou nada aquela prendada moça preparar o doce predileto dele, que o cara não resistiu aos apelos da rua. E lá vai ele, dizendo que vai trabalhar, mas na verdade vai parar de bar em bar, olhar as meninas na praia, beber umas e outras com os amigos, bater um sambinha na caixa de fósforos. É o que conta Chico Buarque em sua Com açúcar, com afeto, de 1966. De noite, o cara volta, todo arrependido, pedindo perdão. E ela
Ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê!
Logo vou esquentar seu prato,
Dou um beijo em seu retrato
E abro meus braços pra você
Como eu disse no começo, na maioria dos casos, elas não chegam a serem agredidas fisicamente. Mas, infelizmente, há exceção, e esta é contundente. É uma masoquista assumida, pois gosta de apanhar. E faz questão de escancarar seu desvio de comportamento na interpretação dramática que a cantora Lana Bittencourt fez em 1958 para a música Haja o que houver, de Fernando César e Nazareno de Brito:
Bata se quer me bater
Será pra mim um prazer
Ajoelhar-me no chão
Pedindo perdão
De um mal que não fiz
Calma, que tem mais pancadaria:
Xingue, maltrate, eu sou sua
Pode jogar-me na rua
E coitadinho daquele
Que se intrometer
Eu só lhe quero, repito,
Você é meu infinito,
Haja que houver cantarei
Parabéns pra você!
Ainda bem que surge uma delas para livrar a cara das demais. É aquela da Ronda, que o Paulo Vanzolini compôs em 1951. Incansável, vai atrás do seu homem e ai dele se ela o encontrar num bar, bebendo com outras mulheres:
E nesse dia então,
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar da Avenida São João!
Vocês notaram que todas essas canções foram compostas por homens? Será uma manifestação poético-musical do machismo brasileiro ou uma demonstração de que a violência masculina já está entranhada no DNA de nossa sociedade?
Mas, para não achar que sou um tiozinho nostálgico, que só abre o baú para exibir as mazelas das damas do passado, descobri uma personagem mais recente e descolada. Ela até pode fazer eco com a mulher da Ronda, porém com mais atitude, mas ciente de seus valores, a começar pelo nome da canção: Sou guerreira. A música é da cantora Paula Lima e a letra, como não poderia deixar de ser, de dois marmanjos: Seu Jorge e Zé Ricardo. Paula Lima gravou no CD que leva seu nome, de 2003, e a interpreta como se falasse de seu alterego:
Sou neguinha, sou guerreira
sou bacana pra o que der e vier
mas não pense que por isso vou dar mole
porque sou mulher
Sua vida é complicada
Isso eu já sei de cor
Você tem que me fazer acreditar
Que vai ficar melhor
É isso ai!
Zedu Lima
14 Comentários
Ediné
setembro 23, 2011 @ 16:36
Como sempre criativo, Zedu abordou de forma inédita e incontestável o tema.
Na minha opinião, mulher não gosta de apanhar (aliás, ninguém, né?), principalmente nos dias atuais, em que conquistou sua independência em todos os sentidos!
Gosta, mesmo, é de ser amada e respeitada!
Beijos
Ediné
Maurício Mellone
setembro 23, 2011 @ 18:49
Ediné:
obrigado pela visita, volte sempre!
abr
Huáscar Nabujco
setembro 23, 2011 @ 14:31
Zedu,
parabéns uma vez mais pelo seu desempenho, aliás, isso já começou
a se tornar um lugar comum em relação aos seus trabalhos!
” Mulher gosta de apanhar “…..isso é puro mito, pois mulher de
qualquer lugar e não somente as brasileiras, não iriam jamais gostar
de sofrer, pois até os irracionais rejeitam.
Eu creio que tudo isso, tem o seu epicentro no inconsciente coletivo masculino,
oriundo de um tremendo complexo de inferioridade que temos em relação a
grandiosidade das mulheres, as quais ” sin prisa y sin pausa “, vão galgando os
íngremes degraus, que um dia certamente as colocarão no pedestal.
Freud certamente deve esclarecer tal comportamento.
Um abraço carinhoso
Huáscar
Maurício Mellone
setembro 23, 2011 @ 14:34
H. Nabuco:
Obrigado por sua visita e concordo com vc sobre o desempenho do nosso
amigo Zedu.
Mas o engraçado sobre as canções é que dentre as elencadas na crônica,
há até autoras que comungam desse pensamento….
abr
Ondina
setembro 21, 2011 @ 09:32
Mas de onde vem tanta criatividade, tanto talento!!!? Ficou maravilhosa a crônica! Eu como sou fã de Zedu desde criancinha, babo pelos textos dele. Até que enfim ele tem um canal para disseminar seus textos que são uma delícia. Mulher gosta de apanhar? Algumas, acho que sim, pelas letras. Mas como são de músicas antigas do tempo em que mulher era submissa, a gente releva. Agora os tempos são outros, se bate (sentido figurado ou físico) a gente dá o troco.
Maurício Mellone
setembro 21, 2011 @ 14:30
Ondina:
Já disse inúmeras vezes ao nosso amigo Zedu para não esconder as crônicas e todo o seu talendo.
Merecemos conhecer esse artista, que insiste em permanecer afastado.
No entanto, meu blog (q ele é padrinho) está sempre à aberto a receber todas as
colaborações dele! O público, que chega até aqui, vai se deliciar com as criativas e instigantes palavras zedunianas!
Obrigado, bjs e venha sempre me visitar.
Nina Marciano
setembro 19, 2011 @ 14:07
Zedu:
Uma bela crônica, com o famoso dom de criação de Zedu Lima. Pelas letras das músicas, a mulher brasileira gosta de apanhar, mas não concordo. Acho que a mulher (normal) gosta mesmo é de ser amada e respeitada.
Nina Marciano
Maurício Mellone
setembro 19, 2011 @ 14:08
Nina:
Nosso amigo tem ideias maravilhosas e linguagem dele é cativante!
Concordo com vc sobre o verdadeiro desejo da mulher: ser amada.
bjs e volte sempre
Jerson Dotti
setembro 18, 2011 @ 17:31
Curti muito o tema, pois nao me lembro de ter visto uma cronica especifica sobre o assunto. Nao quero me aprofundar e nem viajar na maionese, entao serei breve. Acredito que o ser humano, em sua ansia pela felicidade e por querer Viver, acaba aceitando muitas situacoes que o levarao a experiencias dificeis, mas que darao historia e momentos inesqueciveis. Dentro dessa perspectiva muitos homens e mulheres preferem:
” Faca o que quiser eu me entrego, mas me faca feliz”
Mas acho que isso ta mudando para : ” Mesmo triste eu tava feliz”
Abracao Jerson
Maurício Mellone
setembro 19, 2011 @ 14:03
Jerson:
Felicidade é um sentimento q desejamos, sempre.
(por acaso vc assistiu ao novo filme da Bruna Lombardi-roteiro e Ricceli- direção?
Vale a pena conferir, esse é o tema do filme)
Estar atento ao momento presente e saber q podemos desfrutar de felicidade,
basta estarmos atentos, dispostos e abertos a ela!
Bjs e volte sempre me visitar!
Dinah
setembro 16, 2011 @ 17:32
Ótima crônica do Zedu Lima!
Daqui a pouco vamos ter de ‘enquadrar’ os malandros na Lei Maria da Penha da canção…rsrs.
beijo,
Dinah
Maurício Mellone
setembro 19, 2011 @ 14:04
Dinah:
O Zedu é fera, as crônicas dele são excelentes e envolventes.
bjs
Rita Palladino
setembro 16, 2011 @ 17:16
O problema é que a mulher, ao invés de desempenhar um papel no mundo, desempenhou um trapo.
O pior é que hoje em dia, as maiores manifestações de machismo que vejo, vêm das fêmeas da espécie. Talvez o DNA histórico tenha se entranhado nelas…
Maurício Mellone
setembro 16, 2011 @ 17:29
Rita:
Dizem q o machismo só sobrevive porque as mães
educam os filhos dentro desse padrão.
Mas a sacada do Zedu pinçando as canções e os versos
que fundamentam sua argumentação é hipercriativa e de um
bom humor incrível!
Obrigado pela visita e venha sempre!
bjs