De Maurício Mellone em novembro 26, 2019
Classificado pela própria produção como melodrama tropical, o filme do diretor cearense Karim Aïnouz, A Vida Invisível, faz um retrato detalhado das relações familiares do Brasil dos anos 1940 e 1950, desvelando o machismo e a prepotência dos homens sobre as mulheres. Baseado no romance de Martha Batalha (A Vida Invisível de Eurídice Gusmão/2016, Cia das Letras), o filme recebeu o prêmio principal da mostra Um certo olhar, no Festival de Cannes/19 e foi o escolhido para representar o país no Oscar/2020 na categoria de filme estrangeiro.
A trama central mostra o drama vivido pelas irmãs Eurídice e Guida Gusmão, interpretadas brilhantemente por Carol Duarte e Julia Stockler, que mesmo com temperamentos opostos se amavam profundamente e o destino às separou por toda a vida.
O prólogo já sinaliza o futuro das irmãs: Guida, uma moça destemida e à frente de sua época, e Eurídice, tímida e obediente, estão passeando numa floresta do Rio de Janeiro. Guida resolve ir embora enquanto a irmã ainda admira a paisagem; elas se perdem na mata e uma fica gritando pela outra.
Corte e as cenas seguintes já são com as duas irmãs em confidência e planejando a noite: Guida vai se encontrar com o namorado, um marinheiro grego que nem fala português, e pede que Eurídice deixe o portão dos fundos aberto para que ela possa voltar de madrugada sem ser vista pelos pais, um casal português vivido por António Fonseca e Flávia Gusmão, em que o pai é extremamente conservador e autoritário. Eurídice cumpre o combinado, no entanto Guida envia uma carta comunicando aos pais que estava a bordo de um navio que a levaria para a Grécia com o namorado.
Já Eurídice, exímia pianista, sonha estudar na Áustria, mas adia os planos e aceita se casar com Antenor, interpretado por Gregório Duvivier. Inocente, a moça tenta de todas as formas não engravidar para que possa prestar o concurso e continuar seus estudos de piano. Tudo em vão: o marido, mesmo gostando da esposa, a trata com brutalidade e praticamente a estupra a cada relação sexual.
O roteiro, assinado por Murilo Hauser, Inés Bortagaray e pelo diretor, conduz a história de vida das irmãs em paralelo: enquanto Guida volta do exterior grávida, é expulsa de casa pelo pai e tem de refazer a vida como mãe solteira trabalhando num estaleiro, Eurídice também fica grávida e aos poucos vai se amoldando ao estilo de vida imposto primeiramente pelo pai e depois pelo marido. Mentira propalada pelo pai, de que Eurídice morava na Áustria como pianista, faz com que Guida procure manter contato com a irmã somente por cartas, que nunca foram entregues à destinatária. O amor entre elas nunca se apagou, entretanto nunca mais se encontram.
A verdade só vem à tona décadas depois; Eurídice já bem velha — numa participação grandiosa de Fernanda Montenegro — depois do enterro do marido descobre um baú em que todas as cartas da irmã estavam guardadas. Com a ajuda da filha, vivida por Cristina Pereira, ela conhece a sobrinha neta e o mistério da vida da família é desvendado.
Além de uma história tocante, que faz uma radiografia da sociedade brasileira marcada pelo machismo, preconceito e um moralismo tacanho na primeira metade do século XX (o que mudou hoje em dia?), A Vida Invisível tem uma fotografia impecável e uma direção sensível (nenhum detalhe é desprezado, do brinco perdido às cartas e documentos de troca de identidade de Guida). Mas a interpretação das atrizes é o ponto alto da produção: se não bastasse a entrega total das protagonistas Carol Duarte e Julia Stockler, as coadjuvantes só engrandecem a história, tanto Bárbara Santos na pele de Filomena que abrigou Guida, como Maria Manoella que vive Zélia, amiga de Eurídice. Porém, a participação de Fernanda Montenegro é estelar: só com o olhar e algumas palavras a atriz transmite a dimensão e o sofrimento de toda uma vida da personagem. Impossível não se emocionar! E com chave de ouro, o diretor encerra o filme com Caetano Veloso cantando Estranha forma de vida, de Alfredo Duarte e Amália Rodrigues. É de arrepiar. Agora é torcer para que o filme esteja entre as cinco indicações de melhor filme estrangeiro do próximo Oscar. Como aperitivo, fique com o clipe de Caetano:
Fotos: divulgação
4 Comentários
Rodolfo Soares Claus
novembro 27, 2019 @ 18:39
Oi Maurício, li a resenha do filme A Vida Invisível e fiquei muito interessado em ir assistir.
É sempre um prazer visitar seu blog e ter essas dicas incríveis. Grato e abs!!!
Maurício Mellone
novembro 28, 2019 @ 14:09
Rodolfo:
Não deixe de assistir, o filme é emocionante, faz um retrato
da sociedade machista dos anos 1940/1950. Será que mudou? O que mudou?
História comovente, com interpretações brilhantes. Fernanda Montenegro em
alguns minutos transmite a densidade de vida da personagem.
IMPERDÍVEL!
Muito obrigado pelos elogios. Volte sempre, é um prazer recebê-lo por aqui!
Bjs
Antoune Nakkhle
novembro 27, 2019 @ 11:39
Amei o filme e, agora, lendo a resenha, vejo que traduz bem o que o filme é de fato. Gostei muito, parabéns, Maurício Mellone.
Maurício Mellone
novembro 28, 2019 @ 14:12
Antoune:
sem dúvida um grande filme brasileiro: se for o escolhido entre os 5
na disputa à estatueta de filme internacional (a nova nomenclatura)
será forte concorrente. Já pensou estar ao lado do filme do Almodovar?
Obrigado pelo incentivo, sempre!
bjs