De Maurício Mellone em outubro 6, 2020
Com uma temporada bem curta (só quatro semanas), o espetáculo Pós-F- para além do masculino e do feminino encerrou suas apresentações no Teatro Porto Seguro neste final de semana. Tendo como base o livro de Fernanda Young, vencedor do Prêmio Jabuti/19, na categoria crônica, a peça é um solo de Maria Ribeiro, que vive de forma brilhante a provocadora e instigante escritora, roteirista, atriz e apresentadora, que faleceu aos 49 anos, em agosto de 2019.
Com direção de Mika Lins, o espetáculo em versão digital traz as principais indagações de Fernanda Young contidas no livro, como sobre o que é ser mulher e ser homem no mundo contemporâneo, além de discutir sexualidade, maternidade e, no final, confessar seus desejos de um mundo pós-f, que poderia ser pós-feminismo ou pós-Fernanda. Autora de mais de doze obras entre romances, poesias e crônicas, Fernanda, neste primeiro e único livro de não ficção, com relatos autobiográficos mostra as diversas faces de sua personalidade.
“Não sou especialista em nada. Procuro me aprimorar em mim,
entendendo sobre mim — usando, é claro, tudo que observo nos outros.”
Logo no prefácio do livro (Editora Casa da Palavra/LeYa), Fernanda Young diz não ser entendedora de autores e muito menos ser especialista; diz-se “obstinada em compreender a mim mesma”. Em seus relatos autobiográficos, ela discorre sobre temas da vida contemporânea, jogando luz sobre conceitos como feminismo, machismo, sexualidade, maternidade, vida e morte. De forma direta e espontânea, a autora também fala de suas fraquezas, de sua depressão, do marido e dos quatro filhos, de suas limitações e de sua visão de mundo, que às vezes parece ser contraditória. Fernanda Young sempre se apresentou desta forma para o público: livre para expressar suas ideias.
“O feminismo alimenta o machismo e vice-versa. Só vai existir a necessidade de um feminismo radical enquanto alimentarmos a existência do machismo. Acredito que a questão maior é o outro, o respeito ao outro, seja de que sexo for.”
O livro é inteiramente ilustrado com desenhos da própria autora, que dialogam com os textos. Outro atrativo da obra são as cartas que finalizam cada capítulo. Estas cartas foram publicadas originalmente na coluna de Fernanda para a revista Claudia/Ed.Abril e o curioso sãos seus destinatários: a quem não nos enxerga, prezada mulherzinha, aos vendedores de ilusão, ao clitóris, querido companheiro, à bunda, à Lata de Leite, ao pequeno sabotador interno e à culpa. De forma despretensiosa, Fernanda filosofa, toca em temas profundos e usa do humor (como em seus roteiros de programas para a TV) para atingir os leitores.
Passado um ano da morte de Fernanda Young, o livro, mas principalmente o último capítulo, ganha um tom premonitório, passa a ser seu legado, já que a autora expressa seu desejo para um mundo Pós-F:
“O que não desacredito nunca é na potência do amor, que cura, que recupera. Amar é um exercício. Que, numa próxima vida, eu me encontre de novo com Alexandre Machado. Mas dessa vez, eu quero que ele seja mulher.”
MONTAGEM CRIATIVA
Depois de mais de cinco meses com os teatros fechados em razão da pandemia da Covid-19, alguns artistas estão retomando as atividades teatrais, com espetáculos em versões digitais. Iniciativa das mais louváveis. No entanto, como as transmissões são on line, o resultado, na maioria das vezes, apresenta falhas, pois não é teatro, não é cinema, não é telenovela e tão pouco audiovisual.
Não é o caso de Pós-F- para além do masculino e do feminino, montagem que soube explorar os recursos desta nova linguagem que está sendo criada para este momento. Com mais de uma câmera de captação, as imagens são transmitidas, ao vivo, de vários ângulos (inclusive do teto). Outros elementos que tornaram a montagem dinâmica e criativa são a movimentação da atriz pelo belo cenário e a iluminação, ambas adequadas para a tela de transmissão, além da trilha sonora perfeitamente encaixada ao texto profundo e comovente de Fernanda Young.
Dois vídeos são veiculados, que também dialogam com a atriz no palco: no primeiro é a discussão entre Maria e a equipe de criação sobre uma contradição que Fernanda traz no livro sobre sexualidade e a mudança do corpo. O outro, sensível e delicado, veiculado pouco antes do final, complementa a ação desenvolvida em cena. E o grande destaque do espetáculo fica para a atuação de Maria Ribeiro, que consegue não só dar vida a uma personagem tão rica e polêmica, como apresentar o contraponto à postura de Fernanda Young. Único senão: uma temporada tão pequena. Um espetáculo criativo e inovador bem merecia um tempo bem maior em cartaz. Fica aqui minha torcida para haja outras temporadas.
Pós-F- para além do masculino e do feminino
Ficha técnica/livro:
Autora: Fernanda Young
Editora: Casa da Palavra/LeYa,2018, 128 pgs
Roteiro/peça:
Texto: Fernanda Young. Adaptação: Caetano Vilela, Maria Ribeiro e Mika Lins. Direção e cenografia: Mika Lins. Elenco: Maria Ribeiro. Iluminação: Caetano Vilela. Figurino: Maria Ribeiro e Mika Lins. Trilha sonora: Estela May. Produtor da live, vídeo e sonoplastia: Rodrigo Gava. Ilustração:Fernanda Young e Estela May. Diretor de palco: Alexander Peixoto. Direção de produção: Dani Angelotti. Realização: Cubo Produções e Cia Instável.
Fotos: divulgação
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