De Maurício Mellone em janeiro 28, 2015
Terceiro sinal para iniciar o espetáculo, com o cenário (interior de uma residência) sendo iluminado por algumas velas e a plateia é surpreendida com a bela voz de Ary Fontoura cantando, a capela, as primeiras estrofes da clássica Fascinação (Dante Marchetti e Maurice de Feraudy):
“Os sonhos mais lindos sonhei,/
De quimeras mil um castelo, ergui,/
E no teu olhar, tonto de emoção,/
Com sofreguidão, mil venturas previ.”
Nada mais glamouroso do que este início. O Comediante, peça do gaúcho Joseph Meyer, que está em cartaz no Teatro Raul Cortez, faz duas grandes homenagens: primeiro a José Wilker, que idealizou o espetáculo ao lado de Ary Fontoura e faleceu antes de terminar sua direção e, em segundo, a trama reverencia a arte dramática por intermédio da história do ator Walter Delon (Ary).
Afastado dos palcos há anos e sem convites para atuar no cinema e TV, Delon recebe a proposta para dar um depoimento para a jornalista Júlia (Carol Loback) que fará sua biografia. Boa ideia para resgatar a imagem do artista, mas tudo não passa de uma armação do agente Eric (Gustavo Arthiddoro) e da governanta Norma, vivida por Angela Rebello.
Se o velho ator é enganado pelos seus colaboradores diretos (Norma inclusive encomenda flores para que sejam entregues em nome de fãs), ele também usa de máscaras e superterfúgios. Para que a jornalista não desvende a fraude e o ostracismo em que vive na atualidade, Delon tenta supervalorizar, tanto sua vida pessoal como a carreira artística.
“A peça é inspirada no filme, Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses) de Billy Wilder, e faz uma crítica à indústria cultural do entretenimento. A narrativa transita pelo universo cômico e pelo drama psicológico de um ator que, enfeitiçado pela própria imagem, cria um mundo paralelo, numa época em que a mídia idolatra o efêmero e torna o sujeito descartável, o ator em produto, substituindo o velho pelo novo, o feio pelo belo”, pondera Joseph Meyer.
O que sobressai em O Comediante é a dualidade da trama; em meio a passagens cômicas — a luta do ator em forçar a presença da jornalista em sua casa e a presença onipresente da governanta, em bela composição de Angela—, a tristeza de Delon vem à tona e ele tem de enfrentar a verdade: está velho, descartado do mercado de trabalho e só. Realidade dura, não apenas do personagem, mas de grande parte das pessoas na sociedade contemporânea.
Ter a chance de conferir a performance de Ary Fontoura (que completou 82 anos nesta temporada paulistana) é o grande destaque da montagem. Numa cena, ele dá exemplos de interpretações no decorrer do tempo, desde a época que não existiam os veículos audiovisuais (o gestual do ator era exagerado) até a atuação contida e livre de cacoetes como a atual. Confira!
Fotos: Leonardo Aversa
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