A Mulher Sem Dente, conto inédito de Mario Garrone

De em novembro 1, 2011

Escritor Mario Garrone

Tive a grata satisfação de receber hoje pela manhã um telefonema do meu amigo Mario Garrone perguntando se eu gostaria de publicar mais um conto. Obviamente que aceitei no ato. Pelo contrário, fico muito honrado em poder abrir este espaço para que ele possa mostrar ao público mais um de seus escritos. E a alegria é ainda maior ao constatar que a cada novo trabalho Mario vem aperfeiçoando ainda mais seu estilo. Como escreveu inúmeras peças teatrais, o autor é exímio em criar cenas e situações inusitadas; e no conto, que você lerá a seguir, a gente vai visualizando a cena descrita, tal a facilidade com que ele desenha os personagens e a ação. E o mais curioso do estilo de Garrone é a elisão ou omissão de termos nas frases, o que incita o leitor a completar a ideia sugerida por ele. E como no outro conto Ataliba e o gato angorá (já publicado aqui), o desfecho fica por conta do leitor. Mario cria a cena, apresenta os indícios do clímax da ação, mas deixa com que o público crie, imagine o final da história. Instigante, provoca o leitor a reler toda a trama e tentar desvendar o mistério sugerido pelo autor. Mario, muito obrigado por confiar no Favo do Mellone como veículo propagador de sua obra. Boa leitura e deixe comentário contando o final que você imaginou.

A Mulher Sem Dente

Celinha não ia.
O mundo que tivesse virado do avesso e o anãozinho junto. Quem com isso e com o banqueiro que surrupiou todo o dinheiro e sempre foi assim com o senador? Que se fodessem ele e o senador de bigode. O homem-girafa que cagasse na calçada e parisse um monstro na frente do Masp. Que todos os infelizes e drogados tivessem combinado pela internet a revolta completa da ralé para aquela única noite em que quase nevou em São Paulo.

A mãe ligou e disse que não tinha sentido nenhum. Era o cúmulo uma tia fazer o que ela, só mesmo não tendo um pinguinho de amor na alma.

Com a garganta ardendo e a coriza? O corpo doía. Nessas horas não tem coisa melhor do que a cama. Era o que tinha de ser. O corpo sabia. Um chá quentíssimo de limão e alho.

Celinha tinha decidido deitar cedo e cobrir o corpo com a colcha e o edredon. Mas a mãe. Que só quem detesta a sobrinha, quem odeia e não está nem aí com a família. Só mesmo para quem a família não existe, não conta e vale menos que um traque.

Garoava. Uma garoa gelada para quem tinha tosse. A mãe ligou e deixou claro que era um absurdo, um absurdo danado, uma coisa horrorosa que uma tia não faz. Que uma tia que se preze jamais apronta uma igual.

O corpo sabia. Um chá quente e cama. Que graça tem se a cabeça lateja e castiga? O propósito era ficar em casa e respeitar a febre.

Mas quem disse que a mãe sossega e alivia? Era o cúmulo a Celinha! Aquilo nem a pior das piores. Nem a mais vil das mais vis. Nem a Zulmirinha do Miranda, que matou o marido e a sogra.

Um chá de limão com alho, um comprimido e ela debaixo da colcha. Era o que tinha que ser e só isso.

Dona Nena ligou e disse que nem aqui nem na China. Que só mesmo Celinha para inventar uma desculpa daquela. Que ela tinha sido contra desde o começo, pressentido que ia dar merda. Que vindo da filha somente merda.

Um frio de um jeito que não havia blusa, um vento que uivava e chacoalhava, uma chuviscaiada que por pouco quase foi neve no único dia em que São Paulo quase foi branca.

Celinha quis xingar dona Nena de puta. Não xingou por um triz. Alguma coisinha fez ela segurar o nome feio na boca. Ia bater o telefone na cara depois de quase. Nem uma coisa nem outra.

E o Irineu nisso tudo? Ela não pensava um minuto no Irineu Francisco? O que o Irizinho ia ficar fazendo no altar? Que o Iri Chico não via a hora, estava mais ansioso que a noiva.

A decisão era não ir em hipótese nenhuma.

Reza a lenda cruel que Celinha era doida, maquiavélica, uma mulher sem índole, escrúpulo nenhum, mas ela não ia porque tinha motivo. Sempre há um motivo pelo qual.

Que sentido tem festa com febre? Quando se está doente o lugar ideal é a cama. Um banho quente e cama. E que caísse a neve no único dia em que quase houve o que ninguém nunca vira nas cercanias de Higienópolis e da Barra Funda.

Uma desculpa fajuta, uma sujeira pavorosa, uma tia não mija na calça, não deixa uma sobrinha na mão. Ah, a mãe é uma coisa, é um troço!

Ventava quase sem trégua, um barulhinho irritante na vidraça e a febre comprovadíssima no termômetro dentro da boca.

Quem disse que quem faz alguma coisa que presta neste mundo ainda precisa ser bom? Picasso era bom? A Coco era boa? O Miles era o quê? Celinha não era boa e não ia coisa nenhuma.

Era o fim da picada aprontar com a sobrinha. Que ela sempre soube que ia dar merda quando a neta cismou. Que Celinha de madrinha não podia dar noutra. Tinham comprado um terno caríssimo de grife daquele italiano no shopping mais fresco para o Irineu, e para quê? O que um padrinho sem par ia fazer com a roupa de grife lá em cima perto do padre? O Iri Chico nem vinha dormindo direito. Uma tal de ansiedade que nunca. Assim nem a noiva.

Um comprimido efervescente e nada de igreja. Ela não ia. Celinha tinha febre e não ia. Não havia por que sair com um tempo daquele para um casamento cuja noiva nunca fora com a cara da tia.

Depois do banho quente, entretanto, houve um porém. Sem que nada de novo com a febre, sem trégua nenhuma na tosse, arrefecimento nenhum no quadro clínico, Celinha de vestido transparente diante do espelho olhando o formato da bunda sem calcinha. E na parte frontal a visibilidade do chumaço de pelos da púbis. A coriza lá e o vestido decotado mostrando também os bicos grandes dos seios.

O vestido vermelho longo e o batom, além de um tantinho de ruge e a pulseira e os brincos. Um pouco abatida, mas bonita. Celinha nunca foi feia.

Se a pessoa está com febre, o melhor é não ir. Era isso que era para ser. Ela deitada na cama e o chá de alho. Alguma coisa que a mãe impiedosa.  A mãe soube tocar no ponto, em algum pontinho fundo, qualquer coisa  obscura, um detalhe perverso, um resquício podre. Ah, dona Nena é um negócio!

Teve quem disse até que a neve caiu nas cabeças das mulheres e dos homens, que nevou no Bixiga e na represa Billings. Mas não. Foi só quase.

Ilustração de Ricardo Castro

O senador de bigode saiu do carro e a mãe diz que toda a culpa é do mundo sem amor. Que não há mais amor entre os homens. Se é que algum dia alguém teve amor por alguém neste mundo em que não se salva mais nem criança nem cachorro.

O senador saiu do carro do banqueiro que deu o golpe. Garoava frio e o senador de bigode não viu a vovó de costeleta na esquina com o casaquinho de brechó.

Celinha tossia no táxi dentro de um vestido de altíssimo verão para a primeira noite em que a neve nem no Pacaembu nem no Capão. Quando se tem febre não convém. Ela sabia muito bem que se o nariz escorre não há papel que enxugue. Com febre, só a cama, e vê se não inventa.

Parque Trianon, na capital paulista

O senador que não largava o osso nem a pau saiu do carro e não viu a  vovó de costeleta na esquina do Trianon. Ou se viu, não lhe passou pela cabeça que a senhora andrógina tivesse o inadmissibilíssimo displante.

Dentro do carro o banqueiro que deu o golpe e na rua o senador que é dono de tudo perto da vovó de costeleta e um pouquinho de cavanhaque. E mais adiante os outros três. O anão, o homem comprido e a banguela.

A mãe falou alguma coisa dura e Celinha foi com o vestido que não se usa numa noite em que quase. Celinha nunca deu a mínima, egocêntrica, não raro irascível, sim, uma mente brilhante, uma líder nata. Precisava ser boa para quê?

Ela amanheceu decidida a não ir. Ser madrinha na igreja era a última coisa do mundo.

Que a mulher banguela e drogada até saísse do chão e voasse pela Paulista sem asa. Que num voo rasante apontasse o trinta e oito sob a neve
que quase caiu em São Paulo na noite em que a sobrinha entrou nervosíssima na igreja acompanhado do pai que bebe.

Qualquer coisa lá que a dona Nena, e a Celinha mudando de ideia debaixo da água quentíssima da ducha. Pelo ansioso e tolíssimo Iri Chico?

Pela sobrinha, noiva do filho do diplomata galã que trai a mulher com o vagal do Peruche?

O motorista do táxi era totalmente descrente com a neve que vinha. Em São Paulo ainda nunca nevou, dona. Nem vai.

Celinha de vestido vermelho transparente mostrando os seios não estava nem aí se nevasse ou caísse enxofre. Podia até cair bosta. Mas mutíssima atrás do motorista com voz de irradiador de jogo que não punha de jeito nenhum a mão no fogo. Nevar é que não.

O banqueiro viu a mulher banguela quando o senador abriu o guarda-chuva para se livrar da garoa que em breve viria a ser neve, embora no fim já se saiba que certíssimo estava mesmo o motorista. Em São Paulo é que nunca. A banguela viu o senador saindo do carro e o banqueiro sentado no banco de trás. Se o motorista do banqueiro viu o anão, não se sabe. Se viu, viu quando nem mais segurança, se houvesse um para tentar impedir.

O senador de bigode abriu o guarda-chuva e o negócio começou mais ou menos daí, precisão nunca há, o que um olho vê o outro não enxerga, a verdade nunca existiu. Cada um diz uma coisa, o que tem de versão  conflitante, depoimentos dúbios, certezas mancas.  Só se sabe que o bangue-bangue foi daí para a frente. A banguela drogada saiu gritando e berrando que o Brasil é o cu e o banqueiro do golpe e o senador de bigode são a chaga que impede. Ninguém conseguiu segurar a mulher sem dente quando ela viu o senador ladrão andando pelo Trianon a esmo em direção a não se sabe onde. Ela disse que ia fazer justiça com as mãos. Que a justiça era com ela mesma. Com ninguém mais senão com a mulher banguela obesa. Ela, a vovó de costeleta, o homem-girafa e o anãozinho albino com probleminha de visão.

A mãe garante que o mundo sem Deus  tem culpa, mas não poupa de jeito nenhum a quadrilha. E não aceita menos que a pena de morte para a mulher sem dente que começou a dar tiro na noite em que porra nenhuma de neve na Penha nem no Pari, que dirá no Capão.

Mario Garrone

Ilustração: Ricardo Castro
Fotos: imagens da internet


2 Comentários

José Renato de Almeida Prado

junho 13, 2012 @ 22:37

Resposta

Ótimo conto!
Realmente instigante.
Parabéns ao autor Mario Garrone e ao blog

Maurício Mellone

junho 14, 2012 @ 14:28

Resposta

José Renato:
O escritor Mario Garrone acaba de lançar seu segundo romance
(Pequeno Relato sobre o Caos, Chiado Editora http://www.chiadoeditora.com)
Se vc tiver interesse e não encontrar nas grandes livrarias, peça
seu exemplar para a editora, q é de Portugal.
abr e obrigado pela visita

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